Já vestido pro safari – câmera, chapéu, protetor solar – demos falta do passaporte do Guilherme. Não dá pra ir ao safari sem ele: o Kruger Park fica do outro lado da fronteira, já na África do Sul.
Procura daqui, procura de lá… nada. Mudamos faz menos de um mês, o raio do passaporte deve estar em algum canto. Já sei até o que vai acontecer: daqui uns meses, mexendo numa mala pra procurar não-sei-o-quê, o passaporte vai pular lá de dentro. Mas não dá pra esperar até este dia para ver os elefantes.
Para tirar novo passaporte é preciso fazer boletim de ocorrência. E enfrentar a burocracia. O que não deixa de ser um outro safari…
Fui à esquadra (a delegacia). Um sujeito só no guichê. Espera de meia hora. Na frente do polícia, um “livro de registro”. É um livro de ponto, no qual o agente, com boa caligrafia, vai registrando tudo o que aparece por ali: assalto, roubo, furto, briga, extravio de documentos… Quase o CSI.
Detalhe: sem papel carbono ou equivalente. Pensei: “Ih… isso aqui vai demorar”. Não imaginava quanto.
Chega minha vez: nome, estado civil, nacionalidade, nome da mãe, do pai… e do Guilherme também: nome, estado civil, nacionalidade, nome da mãe, do pai… tudo em boa caligrafia. E sem carbono.
Termina. O polícia me olha. Eu olho pra ele. Já aprendi a identificar esse olhar: “ah! o senhor quer uma cópia? Só depois de passar pelo Inspetor”, com aquela cara de que “mas não vai demorar se nós pudermos nos entender”. “Ah, é?”, respondo eu, com cara de vaca atolada. “Se não há outro jeito, né? Vamos ter com o inspetor, então.”
Eles nunca esperam por essa resposta.
Percebendo que não vai haver outro jeito, o diligente policial levanta-se da cadeira e arrasta-se pelo corredor, me fazendo sinal para vir com ele. Me leva ao que, no Brasil, seria o cartório da delegacia. Me aponta um papel na parede. “O senhor precisa copiar isso aqui”, diz, repetindo aquele olhar de alguns minutos antes, que quer dizer: “ó que merda. Mas, se você me ajudar, eu te ajudo também”. A vaca atolada aqui não muda de cara. E ele sai da sala, me deixando à sós com o papel.
Conhecedor das agruras dos ofícios (leia aqui como foi pra tirar um documento no Ministério da Educação, quando copiei um requerimento – a mão – quatro vezes)lancei-me à cópia, repeitando os dedos de parágrafo e os centímetros de margem:
“EXMO SENHOR INSPECTOR DA POLÍCIA DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL:
Eu…, casado, de 37 anos de idade, brasileiro, filho de xxxx e yyyyyy, natural de São Paulo, residente no Bairro Central, à Rua xxxxxx, contacto telefônico 82-xxxxxxx, vem mui respeitosamente rogar à V. Excia se digne passar-lhe uma declaração por ter sido extraviado o passaporte de seu sobrinho, GUILHERME xxxxx.”
Junto com o texto, ele me deu um protocolo. Escrito à mão, com a mesma bela caligrafia:
“Comando da PRM – cidade de Maputo
xxx Esquadra da PRM – cidade de Maputo
Participação número xxx
Maputo, aos 17.03.2001
Fulano de Tal”
E… póft: o carimbo da polícia. Como já disse aqui também, (veja o relato), sem carimbo não se vai a lugar nenhum.
Velhaco nesses troços, não mudei uma única palavra do requerimento. Inspetor de polícia é excelência, e acabou. Se quisesse ser chamado de Vossa Reverendíssima, seria. Não tem problema pra mim – desde que saia o documento.
Copio. Entrego no cartório. “Não pode ser hoje. Os registros de hoje só dão entrada amanhã. O senhor volta amanhã”, disse a funcionária do cartório, me olhando por cima dos óculos – aquele olhar, de novo. Nem reclamei. Volto amanhã.
Voltei amanhã. Outra funcionária estava no cartório. Levei o pedido e o protocolo carimbado. Ela olhou, olhou… “está certo”, disse. “O senhor volta na terça-feira”. “Terça-feira? Hoje é sexta!”
Por que terça? Porque segunda tem “uma reunião no comando”. A população espera, não tem problema. Isso porque o registro é de um extravio de documento. Ainda bem que temos cópia autenticada. Porque, se não tivéssemos, correríamos o risco de, ao sermos parados pela polícia e informar o guarda que “o miúdo está sem passaporte”, seríamos alvo, de novo, daquele famoso olhar.
Terça-feira vou lá de novo. De óculos escuros.