O que fica é a vida

A cultura moçambicana dá muito peso ao momento da morte – como, também, várias outras culturas africanas.

Quem perde o pai ou a mãe fica vários dias sem trabalhar. Por causa da tristeza e, também, das cerimônias fúnebres, que reúnem a família, a vizinhança, os amigos.

Por isso tudo, foi de certa forma surpreendente, aqui, a despedida da Mariana.

Ela morreu ontem, em casa. Portuguesa, vivia em Moçambique há muito tempo. Era dona do restaurante que batizou um sanduíche com o nome do meu sobrinho (a tia, orgulhosa, contou a história aqui, no Mosanblog.)

Mariana estava com câncer, mas nós não sabíamos. Falante, sempre alegre, nunca deu nenhum sinal. Quando chegou a notícia, no fim da tarde de ontem, foi uma surpresa.

O marido, Jorge, despediu-se como Mariana pediu: de forma rápida, simples, discreta. Não avisou ninguém – só soube quem, de um jeito ou de outro, o ajudou desde quando ela faleceu, menos de 15 horas antes.

Quando chegamos no cemitério do Lhanguene, o crematório – “Crematório Hindu”, dizia a marca na porta – estava vazio.

Logo depois veio o carro da funerária, trazendo o motorista, o Jorge, e um caixão simples, de madeira prensada, pintado de cinza azulado. Três rapazes tiraram o caixão do carro e o colocaram em um carrinho de ferro, já em frente ao forno.

O forno é uma construção grande, que lembra a imagem que temos de uma caixa-forte de banco, com portas pesadas que se encontram no meio.

Não havia flores, cadeiras, nada. Jorge olhava, sozinho, no canto, com os olhos molhados.

Algumas pessoas conhecidas chegavam, e cumprimentavam o Jorge sem dizer muita coisa. Nisso, os rapazes do cemitério começaram a colocar toras de madeira sob o caixão. Alguns pedaços de tronco também foram dispostos por cima.

Ao lado, no jardim, uma fogueira já ardia. Um dos rapazes foi lá e, com uma pá comprida, pegou um pouco dos brasas incandescentes.

“Um familiar, por favor”, disse o homem, entregando a pá ao Jorge. Foram as únicas palavras da cerimônia.

Jorge pegou a pá e colocou sob o caixão, como indicado pelo funcionário. Logo, outra pá de brasas foi depositada no outro lado do caixão, e uma fumaça esbranquiçada começou a subir.

Em três, quatro minutos, o caixão começou a arder. Então, os funcionários empurraram o carrinho para dentro do forno. Enquanto a porta fechava, as labaredas envolviam o caixão em uma luz alaranjada.

Não houve prece, reza, discursos, despedidas. Só o silêncio.

Em dez minutos, em meio à dez pessoas se tanto, saí do crematório lembrando das gargalhadas na Mariana, do sanduíche da Mariana, do pouco que convivi com ela. Da morte, nada.

O que ficou, foi a vida.

2 comentários em “O que fica é a vida

  1. Achei bonita a forma como a vontade dela foi respeitada. Tudo correu exatamente como ela queria, não necessariamente agradando os que ficaram. Mas o que isso importa?

    Adeus, Mariana.

    Sandra.

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