A grande tragédia está por vir

Antes de começar, esclareço que não vou fazer uma ode ao passado – até porque não conheci Moçambique “no passado”. Só vejo bem de perto os problemas, mazelas, desigualdades, injustiças, pobreza, etc, etc, etc, de hoje. Muitos, obra dos atual e passados governos, opções políticas e econômicas locais e globais, etc, etc, etc.

Mas muitos – muitos – diretamente deixados pelo colonialismo.

“Lourenço Marques (nome que Maputo tinha antes da independência) era linda”. “Pérola do Índico”. “Uma das poucas cidades do mundo com rede elétrica inteiramente subterrânea”. “Pujante, mas bem organizada”. “Limpíssima”.

Pode tudo ser verdade. Mas, neste cenário, viveu-se uma história – que tem efeitos sobre ele.

Se quem mantinha a cidade assim no tempo da colônia tivesse pensando no futuro dela (e não só no seu), a Maputo de hoje poderia estar, ao menos, bem mais perto disso.

Aqui, em 1975, quando houve a independência, 96% da população moçambicana era analfabeta. De maneira geral, escola era pra colono. Os poucos que conseguiram ir além disso (Mondlane, Samora, Chissano – só pra ficar nos mais famosos) trataram de lutar pra se livrar de quem os oprimia. Quem não faria igual?

As populações das colônias foram marginalizadas, exploradas, torturadas, aviltadas pelos colonizadores. E teve guerra – que só deixa perdedores sempre. Teve guerra e teimosia: no caso moçambicano, os colonizadores teimaram em não sair até o fim, impossibilitando que o país se preparasse para tomar conta de si próprio.

Até mesmo depois de anunciado o acordo pela independência, fechado em Lusaka, houve o episódio da tomada da Rádio Moçambique pelos portugueses inconformados. Muita gente morreu, e a resistência gerou resistência: o novo governo, socialista, endureceu as circunstâncias para os portugueses que queriam ficar. Foi instituída a famosa lei “20/24” – quem quis ir, só pôde levar 20 quilos de pertences, e deixar o país em 24 horas.

Ponha racismo – de lado a lado – por cima de tudo.

Logo depois, veio a nacionalização. Logo depois, veio a guerra civil. Logo depois, veio a abertura para economia de mercado. Logo depois, veio hoje. É assim, rápido mesmo.

E hoje… bem, hoje quem conta é o jornal A Verdade, texto aí debaixo – que justifica o título do post. Reportagem publicada nesta quinta-feira, 28 de julho de 2011.

36 anos a Degradar

Moçambique assinalou no passado dia 24 de Julho a passagem dos 36 anos das nacionalizações. Esta medida foi tomada pelo primeiro Governo pós-independência chefiado pelo então Presidente Samora Moisés Machel e tinha como objectivo conceder ao povo moçambicano o direito ao acesso à educação, justiça, saúde e habitação.

No que diz respeito à habitação, a partir de 1975 qualquer moçambicano ou estrangeiro residente em Moçambique passou a ter direito a ser proprietário de uma casa, mas em contrapartida perdia o direito de arrendar uma residência a outrem.

De forma a garantir uma boa organização, o Governo assumiu a gestão das casas que estavam arrendadas nessa altura, criando para tal uma empresa denominada Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE), em 1976.

Porém, decorridos 36 anos após o processo, surgem sinais do fracasso da medida. Um dos erros cometidos pelo Governo ao tomar esta medida foi o de não ter definidoas normas para que um cidadão tivesse direito a uma residência.

Alguns dos requisitos que deviam ter sido acautelados na altura tinham que ter em conta a renda da pessoa, a capacidade financeira para garantir a manutenção do edifício, os critérios para a perda do imóvel no caso de incumprimento de algumas obrigações, entre outros, o que não aconteceu e o resultado é o estado avançado de degradação em que se encontram os edifícios. Este cenário podia muito bem ter sido evitado caso as precauções acima descritas tivessem sido tomadas.

A falta de mecanismos claros na atribuição dos imóveis tem resultado em despejos constantes, tendo em conta os casos que têm sido reportados pela comunicação social, a falta de observância das normas de postura urbana, e a degradação dos imóveis que acaba por manchar, de certa forma, a imagem da nossa cidade das acácias, Maputo.

Edifícios decadentes

Alguns edifícios estão a cair aos pedaços e perderam a sua cor devido ao tempo, o que significa que não beneficiam de uma manutenção regular há mais de 20 anos. Casos há em que os prédios não sofrem intervenções desde a independência.

Outro dado que merece uma profunda reflexão é o caso dos espaços comuns, nomeadamente as escadas, terraços, garagens, etc. É normal encontrar edifícios com escadas imundas e sem iluminação, elevadores avariados e, não raras vezes, transformados em lixeiras. Em relação a estes meios, o caso é mais gritante. Mais de 80% (estamos a ser modestos) dos edifícios não têm os seus elevadores funcionais. A ferrugem tomou conta deles.

Um aspecto muito preocupante, por representar um perigo à saúde pública, é o entupimento das fossas e dos esgotos, o que faz com que as águas pluviais tomem de assalto os passeios e as avenidas da cidade exalando um cheiro nauseabundo.

Estado impotente

Este é um dos sectores em relação ao qual o Estado não consegue (?) impor ou fazer cumprir as regras. Os condóminos agem como que destituídos das mais elementares normas de urbanidade. Eles fazem modificações nos imóveis sem consultar as autoridades competentes. Quando as autoridades descobrem, recorrem ao uso da coercibilidade que lhes é conferida por lei.

Todos os edifícios encontram-se gradeados como se de prisões se tratasse, facto que já foi condenado pelo Serviço Nacional de Salvação Pública pois representa um perigo e obstáculo em caso de incêndio ou qualquer tragédia. A questão da segurança é o principal motivo evocado pelos seus mentores.

A falta de uma entidade fiscalizadora ou a incapacidade desta faz com que sejam construídas dispensas nos terraços, o que põe em risco a estrutura do edifício e, por conseguinte, a vida das pessoas pois a construção de um edifício obedece a regras e limites (peso e altura).

A falta de associações de moradores, designadas condomínios, ou o desrespeito pelas que existem tem dificultado a solução de alguns destes problemas. A acção destas resolveria algumas questões tais como o deficiente sistema de canalização, e das instalações eléctricas, pois alguns prédios têm sido privados de água devido às dívidas resultantes do consumo do líquido precioso.

As associações que já existem queixam-se da falta de cumprimento das obrigações por parte de alguns condóminos. Estes recusam-se, por exemplo, a pagar as quotas mensais, embora beneficiem dos serviços prestados pelas associações.

Alguns proprietários, para contornar a falta de condições para a manutenção dos imóveis, têm colocado os mesmos à venda ou arrendam-nos a terceiros, mas o problema é que nenhuma parte do valor proveniente desta acção é direccionada à melhoria das condições dos imóveis.

Para o arquitecto José Forjaz, esta data é de grande importância para a história do país mas considera que o processo das nacionalizações não foi de todo “um mar de rosas”. Forjaz diz que as suas consequências foram sérias pois o processo foi ambíguo. Deu como exemplo o facto de o mesmo “ter prejudicado pessoas em benefício de outras devido à falta de preparação, o que resultou numa grande confusão na atribuição das casas. Foi uma medida política tomada sem nenhuma preparação, impôs-se um sacrifício às pessoas”.

Que medidas deviam ter sido tomadas?

Não se mediram as ferramentas técnicas que deviam ter acompanhado o processo, e os resultados foram/ são contraproducentes. Por isso hoje em dia não conseguimos medir as consequências sociais, económicas e políticas das decisões que tomámos.

Isso faz com que não se alcance o objectivo pretendido. Perdeu-se o impacto das nacionalizações. O impacto foi menor que o esperado. Foi uma decisão tomada por cima do joelho.

Que consequências isso trouxe?

As consequências foram várias. A positiva é que com esta medida o Governo mostrou ao povo moçambicano que se preocupa(va) com o seu estado (leia-se habitação).

E as negativas?

Primeiro, não foram criados mecanismos necessários e suficientes para garantir a durabilidade dos edifícios, o que acelerou a degradação das infra-estruturas. Houve uma ambiguidade durante o processo.

Se por um lado havia prédios na zona urbana a serem nacionalizados, havia, por outro, palhotas que não reuniam condições técnicas para tal, mas, mesmo assim, foram sujeitas à mesma medida. Segundo, devido a essa falta de transparência, houve pessoas sem escrúpulos que se apoderaram de residências porque não havia critérios.

Os prédios reúnem condições de habitabilidade?

Não, e isso coloca em risco a estrutura do edifício e, consequentemente, a vida das pessoas.

Porquê?

Não foi criado um espírito de civilidade. As pessoas deviam ter o prédio como seu e isso significa garantir a sua manutenção, assegurar o funcionamento dos elevadores, a iluminação nas escadas, o pagamento dos guardas, entre outros aspectos que não foram acautelados na altura das nacionalizações.

E em relação ao sistema de saneamento?

Pode parecer ridículo mas grande parte da cidade não tem um sistema de saneamento e drenagem. Para que essas condições existam (construção e manutenção) é necessário que alguém pague, e custa caro, principalmente nas cidades que estão em zonas planas, como Maputo.

Mais, o mais estranho é que mesmo com essas dificuldades a cidade funciona. O nosso município tem um orçamento estimado em 15 dólares por habitante por ano quando há cidades no mundo cujo orçamento é de 1000 dólares por pessoa por ano.

Quando é que deve ser feita a manutenção de um edifício?

A pintura tem de ser feita num intervalo de cinco a sete anos. As instalações (água, luz, gás) devem ser substituídas de 15 em 15 anos. É preciso fazer a verificação regular do estado das ferragens, das portas e do pavimento. Há edifícios que não beneficiam de uma manutenção há mais de 50 anos. A ausência destes cuidados contribui para a degradação dos edifícios. A solução dos problemas deve ser imediata porque custa mais caro reconstruir do que manter, mas as pessoas não pensam nisso.

Mas isso deve-se também à ausência da mão dura do Estado. Há cidades em que os edifícios degradados pagam mais impostos. O Estado deve impor um prazo para que um edifício seja reconstruído ou reabilitado. O mesmo acontece em relação aos terrenos. Há terrenos desocupados há mais de 20 anos, mas não podem ser parcelados porque têm proprietários.

O que tem a dizer em relação ao problema da habitação com que a sociedade se debate?

Não podemos ter o problema de habitação resolvido com as taxas de juros a rondar os 20%. Enquanto as taxas de juro forem altas dificilmente teremos o problema resolvido. Quem ganha 2 mil dólares por mês não pode sonhar com uma casa própria.

Quanto custa uma casa?

Não existe um valor mínimo. Aqui funciona a lei da procura e da oferta. Há maior procura e pouca oferta. Posso dizer que se trata de especulação. Há casas que custam 20 mil dólares, assim como há aquelas que custam 1 milhão de dólares. Temos o caso da cidade de Tete como exemplo.

Porque defende a ideia de que a cidade devia crescer em altura?

Porque isso permite que tenhamos uma cidade organizada e dinâmica. Não podemos ter uma família a ocupar um terreno com 50 por 20, por exemplo. Nesse espaço podemos construir um prédio que acomode mais de 20 famílias. A cidade é feita de convívio entre os seus moradores, é por isso que temos cidades caras como Nova York, Tóquio, Londres, Berlim, Paris. A cidade iria acolher mais pessoas e isso significa mais receitas para o Estado.

As pessoas não têm capacidade para fazer a manutenção

As nacionalizações precipitaram, para além de degradação dos imóveis, outro fenómeno curioso: as construções nos terraços dos prédios. @Verdade saiu à rua e colheu a opinião dos cidadãos.

“O terraço é uma zona não edificante, restrita à utilidade pública e de segurança, entre várias situações; em caso de ocorrer um incêndio é por lá onde se faz o resgate das pessoas, uma vez que hoje as varandas estão `supergradeadas´”, afirma o cidadão Macucule. Aliás, “essas construções põem em risco a segurança dos moradores e do próprio prédio, e perturbam o sistema de evacuação da água e de esgoto.”

Definitivamente, diz, a construção nos terraços é um atropelo à lei, por isso a edilidade não deve licenciar a realização dessas obras como forma de salvaguardar a segurança dos próprios munícipes. Mas: “em caso de necessidade de uso pode-se ocupar no máximo 25% a 50% do terraço não para fins habitacionais, mas como área de apoio ao apartamento para armazenar alguns bens de baixo porte”, sublinhou.

Apesar disso, para Macucule a construção nos terraços não pode ser vista apenas como problema, mas também como solução doutro problema urbanístico, pois enquanto a pessoa constrói e habita nesse terraço continua a beneficiar das facilidades que a cidade oferece; o mesmo pode não acontecer em caso de morar fora da cidade onde devem ser criadas infra- -estruturas que liguem as pessoas à vida da urbe.

Outro problema, diz, é que isso denuncia a rejeição deliberada do sistema urbano herdado dos portugueses construído num outro plano de conjuntura social. Já que, até hoje a edilidade não se preocupou em ajustá-lo à actual realidade e exigência social, as pessoas tendem a actualizá-lo por si mesmas.

Entretanto, “há a necessidade de se rever ou mesmo mudar o mecanismo de planeamento da cidade e, acima de tudo, reflectir-se sobre que cidade se pretende no futuro”, concluiu.

“A origem destas construções assenta na pobreza e na incapacidade de gestão dos conselhos municipais. O arquitecto aponta a

criação de um sistema de controlo a nível dos bairros como solução para o problema. Mas antes defende o levantamento do número de construções existentes. “Estas edificações são fáceis de se erguer e difíceis de se destruir”, explica.

O outro problema mais difícil é o da habitação , sobretudo em Maputo, motivado pelo elevado índice de pobreza rural e urbana, que só terá solução quando o nível de vida subir para toda a gente, pois (hoje) há gente a ficar cada vez mais indigente, enquanto outros se tornam abastados.

Em geral, essas construções são algo precárias e os edifícios altos são desenhados com margem de segurança, daí que se esteja provavelmente ainda longe de perigo iminente. No entanto, para uma resposta cabal e responsável é necessário analisar-se caso a caso.

Trinta e seis anos passam depois que o Estado moçambicano nacionalizou o parque imobiliário. No entanto, o grau de conservação dos imóveis deixa muito a desejar. Alguns edifícios clamam por uma urgente reabilitação de raiz.

Outro denominador comum é o estado dos telhados e terraços, dos quais pouco ainda se pode ver senão vestígios que permitem apenas testemunhar que algum dia foram dignos dessa designação.

Janelas sem vidros nem rede e deficiente sistema de esgoto, drenos e fossas que libertam excrementos nos mesmos espaços de que o homem se serve para circular, bem como conferem à cidade um cheiro bafiento, constituem outro retrato negativo da cidade.

Na fileira de edifícios assentes ao longo da avenida Eduardo Mondlane, a escassos metros da esquina com a Guerra Popular, o capim e plantas trepadeiras têm lá o seu abrigo.

João Fumo apela para que se encontrem soluções para pôr as casas em condições, porque as pessoas que outrora habitavam nelas tinham uma capacidade financeira 30 vezes maior do que estas que hoje as ocupam. “O seu rendimento não é suficiente para substituir o vidro partido, pintar as paredes, reabilitar aqui e ali”, sublinha.

Por exemplo, “quem ganha dez mil meticais de salário, que é três vezes mais do que o salário mínimo, ao cuidar da alimentação, do vestuário, do transporte, da educação e da saúde, sinceramente, nada lhe resta para olhar pela casa”, conclui.

Em suma: analisando o problema de uma forma bastante realista, Maputo é um mundo perdido – ou pelo menos uma cidade perdida onde a magnificência do seu passado é evidente em todo o lado.

Fogo danifica transmissor da TV Miramar em Maputo

Ainda não há uma previsão de quando o sinal aberto voltará a ser transmitido para a capital do país, Maputo, e a vizinha Matola.

A operação continua normalmente via TV Cabo e Startime, além de via satélite, que leva o sinal para todo país e os 14 vizinhos da África Austral.

O fogo danificou o transmissor, que fica no alto do edifício do Comitê Central da Frelimo. Também foi atingido o equipamento da Rádio Miramar 101,4 FM.

A Rede Record tem experiência em levantar-se de incêndios. A Miramar sairá desse episódio ainda mais forte.

A fome na Somália e a loirinha no sinal

Parado no sinal fechado, voltando do almoço, vi a loirinha abrir a janela do Jeepão 4×4 e fazer um gesto pra menino que estava ali, no cruzamento das avenidas Mao Tse Tung (ele mesmo) e Julius Nyerere (ex-presidente da Tanzânia), zona nobre de Maputo. O garoto veio, correndo entre os carros. A moça deu a ele dois saquinhos – um azul e outro rosa. Eram de algodão doce. Os olhos do menino ficaram bem arregalados, e muitos foram os sorrisos e agradecimentos.

Abriu o sinal, o trânsito andou, o Jeepão foi embora, e eu, sem vaga pra parar o carro, acabei por ter que dar outra volta no quarteirão, parando quase no mesmo sinal fechado, uns dois minutos depois da cena inicial. Tempo suficiente para ver o mesmo menino, os mesmos saquinhos. Só que agora, ele já estava tentando vendê-los.

Decepcionado com tanta “ganância”? Não fique. Sorriso e algodão doce podem até preencher o coração do menino de amor, mas não mata a fome dele. O que mata a fome dele é xima: água e farinha de milho, base da alimentação de milhões e milhões de africanos.

“Quebra um pouco o encanto”, mas pobreza não tem encanto. Olhos azuis cercados por cabelos amarelos, quando encontram olhos pretinhos num rosto tristonho, costumam brilhar de compaixão e piscar intensamente, cheios de doçura – mas não enchem barriga.

Pra alguns também “quebra o encanto” saber que aquele agasalho velho que foi doado para “os pobres da África” não é entregue a um “pobre da África”. É destinado a instituições (em alguns países é mesmo o governo que faz isso) que – segure seu queixo, loirinha – vendem essas roupas, aos fardos, para revendedores locais.

Há verdadeiros mercados só com as roupas doadas. Aqui em Moçambique chamam a isso de “Calamidades”. “Comprei nas Calamidades”, é a frase. Camisas, calças, cintos, vestidos, agasalhos, sapatos, cobertores, tecidos, chapéus, toalhas, sacos de dormir, barracas de lona, fogareiros. Tem de tudo nas Calamidades.

Sim, loirinha: eles vendem aquele vestidinho que você doou “com tanto carinho”. E isso é ótimo. Gera emprego e renda pro vendedor, distribuidor, revendedor, costureira que conserta o que não vem bom, motorista do caminhão. Alguém usa a roupa, mas alguém também ganha dinheiro – e compra farinha pra fazer xima.

“Mas estão lucrando em cima de mim! Da doação que fiz com tanto carinho!” Bom, chegamos ao ponto da indignação, então: é que eles ganham, e não você – que doou “com tanto carinho”.

Entrevistei Dom Paulo Evaristo Arns, uma vez, nas vésperas de um Natal. No clima, pediu para as pessoas não restringirem a caridade ao fim do ano, e, também, a “doarem de verdade”. “Mas o que é doar de verdade, Dom Paulo?” “Doar de verdade é tirar de si – do que lhe fará falta – para dar a quem precisa. A doação de que fala a Bíblia é aquela em que você arranca de si próprio para que o próximo receba, mesmo que você fique sem.”

Quantos ficarão decepcionados na porta do Céu! Vão bater e voltar, mesmo tendo doado milhões de dólares para a caridade.

Ao longo da vida, “deram de coração”, “deram com carinho” – mas só o excedente. Deram porque não fazia falta. Ajudaram ao próximo? Sim. Mas, pelas palavras de Dom Paulo, passando longe da tal “doação de verdade”.

Nesta semana, a ONU “alertou para a fome” na Somália. Está hoje nos jornais que “se ninguém fizer nada, 800 mil pessoas morrerão de fome no Chifre da África”. E tem um monte de matéria, repórteres vindo, programas já sendo montados. Sacos de arroz serão enviados em aviões militares. Princesas e atrizes virão beijar os pobrezinhos, e chorar diante de tanta miséria. Talvez algum grupo de artistas de renome monte um show, ou – quem sabe – grave uma música! Cachês serão doados e todos os lucros – excetuadas as despesas, claro – serão doadas para combater a fome na África. Que tal?

“We are the World”, de 1985, foi exatamente isso. O “sobrenome” do projeto era “USA for Africa”, e surgiu quando de um onda de fome bíblica na Etiópia – vizinho de parede da… Somália.

Poucos tinham pensado nisso tudo semana passada, antes do “alerta” da ONU. Mas a fome – oh! – já estava lá. E aqui. E ali. A cada seis habitantes da Terra, um passa fome, a maioria dos famintos é de africanos (e asiáticos também). Metade do continente está abaixo da linha da pobreza. A proporção é essa já faz um tempo. “Se ninguém fizer nada” ficará pior.

Mas, pra ficar claro: que façam. Que venham as princesas, que mandem o arroz, que cantem as canções. Afinal, é de coração. E vai ajudar de alguma forma: é um pouco mais de dinheiro, é um pouco mais de arroz, é um pouco mais de atenção. Um pouco mais de algodão doce.

Imagino que a loirinha do Jeepão deva ter seguido o seu caminho sentindo-se recompensada pelo sorriso do menino, pensando que “se todos no mundo olhassem um pouquinho mais para esse pobres da África, o mundo seria melhor.” Seria, mas não basta “olhar um pouquinho”. É preciso olhar muito, pensar muito, tirar do seu pra ele ter (daí sim) um pouquinho. Mais do que saquinho colorido, eles precisam de impulso, comércio justo, que não se estimule a corrupção, investimento cavalar em educação e saúde. Em uma palavra: oportunidade.

A África fica feliz com sorriso e algodão doce. Mas consegue viver sem eles. Não vive é sem farinha pra fazer xima. A mudança virá, mesmo, no dia em que puder pelo menos sonhar em comprá-la sozinho.

PS: As fotos do post do Marcello Casal Jr, tiradas no Soweto, África do Sul, durante a Copa de 2010.

Mandela Day 2011

Mandela faz hoje 93 anos.

Integrante da realeza de sua região, foi estudar e montou o primeiro escritório de advocacia comandado por negros na África do Sul (ele e Oliver Tambo – que hoje é o nome do aeroporto de Joanesburgo).

Africanista de princípio, foi moldando seu pensamento durante a luta contra a discriminação e o apartheid. No começo, defendia que os negros retomassem o país e expulsassem os brancos. Com o tempo, viu que isso o igualava com os racistas, e mudou de posição.

Passou 27 anos preso por lutar para simplesmente poder ser ele mesmo. Recusou a liberdade quando ela foi oferecida sob condições. Só saiu realmente livre, para pensar e agir. Eleito presidente, poderia massacrar quem o massacrou – mas não. Até contra a vontade de muitos de seus apoiadores, mostrou que o país ( e o mundo) é de todos.

Li sua autobiografia. Agora, estou lendo sua biografia escrita por um jornalista. Ele não é santo – cometeu erros, mudou de opinião, reviu o que havia dito, feito e escrito. Mas… mas.

A ONU consagra o 18 de julho a Nelson Mandela. Longa vida a quem deu a maior parte dela a uma causa. Que viva Nelson Mandela.

Dia do Rock? Então comecemos do começo.

No princípio, era só o verbo. Depois veio um violão e um baixo acústico. Só mais adiante, entrou a bateria. Foi em 1955.

Acima e abaixo, That’s All Right Mama – primeira música gravada por Elvis Presley. Três versões. A de cima, do famoso “Come Back” de 1968, de uma forma que hoje em dia se chama de “acústico”.

Embaixo: um ensaio em 1970, do filme “Elvis é Assim”. E mais abaixo ainda, no palco do Madison Square Garden.

Porque, como disse John Lennon, “before Elvis, there was nothing”. Foi Lennon que disse…

De novo, um ano depois: “Novidade? Absurdo”.

Hoje faz uma ano que acabou a Copa da África.

O texto abaixo foi publicado nesta época, um ano atrás.

Deu discussão. Por isso – rá! – republico.

Reli e não me arrependo… Talvez tenha deixado entender que a Espanha era uma porcaria. Não era. É um bom time – mas nada revolucionário ou maravilhoso. O mesmo para Holanda, num grau um pouco abaixo, até.

Mereceu? Sim, diante do quadro. Se os grandes jogassem como grandes, tudo seria como sempre foi.

“Pela primeira vez desde sempre, Holanda ou Espanha será o campeão. A Europa vai ganhar uma Copa fora do continente. A seleção-sede não passou da primeira fase. E – pra mim o mais inusitado – a final da Copa do Mundo não vai ter Brasil, Itália, Argentina ou Alemanha.

Li coleguinhas dizendo que é “novidade”, “momento histórico”, e tal. Perdão, caros. Para mim não é “novidade”. É um absurdo.

“Então só os grandes podem ter vez, é?” Não. Qualquer um pode ter a sua vez. Os grandes é que não podem deixar a sua vaga escapar.

Brasil, Argentina, Itália e Alemanha moldaram o jogo de futebol como conhecemos. Sem eles, o futebol não seria o mesmo. Não teria ginga, criatividade ou graça. Não teria garra, emoção e categoria. Não teria líbero, e meio campo pegador. Não teria a mesma organização tática, força e disciplina.

Se todos eles fracassam, fracassa o jogo que aprendemos a admirar. Mudança radical, que não vi ser para melhor.

Só admito todos eles fora em caso extremo extremíssimo. Se a Holanda de 74 ocupasse o lugar. Ou a Espanha cheia de craques dos anos 50, que tinha até Di Stefano e Puskas.

Mas a Holanda de 2010 não é a Holanda de 74. E a Espanha de 2010 é a Espanha de sempre.

Fatos, que nem todos querem ver: os ditos craques claramente chegaram mortos, quebrados ou desinteressados no torneio. Não jogaram nada. Nas oitavas de final, erros crassos dos árbitros, contra México e Inglaterra, definiram classificados. Não houve uma única e escassa tentativa – sequer esboço – de inovação tática de ninguém.

Houve jogos emocionantes – claro. Mas emoção motivada pela ruindade, pelo erro. Casos da desclassificação de Gana e do Paraguai. Perder pênaltis no último minuto da prorrogação e dois no mesmo minuto, em fase decisiva de Copa, é imperdoável. Mas deixou os jogos bem mais emocionantes mesmo.

A Copa lembrou, de certa maneira, o Brasileirão do ano passado. Vários times tiveram chance e todas as condições de ganhar o campeonato, mas deixaram escapar. Ganhou o Flamengo porque, por acaso, estava em primeiro quando acabaram as rodadas. Estava claro que, se houvesse mais jogo, poderia dar outro time.

Como ninguém quis ganhar, Holanda e Espanha disputam o título no domingo. Finalmente, um desses contumazes fracassados em Copas do Mundo será o vencedor. O fortuíto campeão de uma Copa cheia de “novidades”.

Soccer City, um ano depois

Ifraim até que fez bem sua parte: logo cedo, na segunda-feira fria, recebeu os turistas com um sorriso, para o tour no Soccer City (aliás, agora é FBN Stadium – ganhou nome de banco). Ele é segurança desde o começo da obra – sabe tudo sobre a construção, jogos, história. Cobrou 250 rands (60 reais) pelo passeio de dois adultos e um estudante. Já mesmo na entrada, deu um recibo escrito à mão, mas não tinha 10 rands de troco.

Mas valeu, pela simpatia dele. Contou detalhes da construção, do sacrifício de um bezerro no meio do campo para acalmar os espíritos, dos sistemas de rega da grama e de câmeras de segurança, do teto italiano que não protege ninguém da chuva. Ifraim valeu o ingresso.

Fomos aos vestiários, às luxuosas tribunas, sala de conferências, subimos ao campo pelo túnel principal. Enfim, o que se espera de uma visita a um estádio de futebol com uma história curta, ainda que estrelada. Uma bela obra de arquitetura, sem dúvida. Mas, para ver, mesmo, pouco. Um quadro no saguão, com os “Big Five” (Pelé, Maradona, Beckembauer, Zidane e (!) Geoff Hurst) é a maior referência histórico/artística do lugar. Mais ou menos no nível da final da Copa daqui, que não foi exatamente uma obra prima.

Junto a uma grande maquete e algumas fotos que fazem referências à abertura e à final da Copa, imagens dos dois eventos que mais encheram o lugar no ano passado: shows do U2 e de Neil Diamond. “Tem jogo aqui ainda?”, pergunto. “Sim”, diz o Ifraim. “Em algumas semanas tem até quarta e sábado – futebol e rugby.”

Em uma semana se completará um ano da final da Copa de 2010, aqui mesmo. Em volta do estádio, a mesma poeira de um ano atrás, mas, claro, muito menos movimento. Aliás, nenhum movimento. Nas pistas em volta do Soccer City, ninguém, nem a pé, nem de carro. Vias novas, largas e vazias. Os semáforos estão desligados até. Alguns foram mesmo desativados, e, deitados no chão, esperam pelo tempo passar.

Ali perto, uns dois quilômetros, se tanto, fica o Museu do Apartheid, que visitei pela quarta vez. Foram 150 rands (32 reais) para nós três – eu, minha esposa Sandra e meu sobrinho Guilherme. Ficamos três horas lá dentro, vendo fotos, filmes, documentos, lendo, conversando. Só saímos quando fechou. É claro que uma coisa não se compara à outra. Mas são atrações turísticas, que cobram, creio, com base no necessário para se manter.

Vi que, neste primeiro ano, até que foi bom o volume de visitas (e dinheiro) obtido com turismo no Soccer City (fiz referência sobre isso em outro texto sobre obras da Copa na África do Sul – olhe aqui). Mas, será que, com o tempo passando, o interesse será o mesmo? E os jogos aqui, quantos serão?

Bem perto, o outro estádio de Joanesburgo na Copa, o Ellis Park, segue funcionando, com “jogos até duas vezes por semana”. Lá, por sinal, nem se cobra pelo tour – que nós também fizemos. Um estádio menor, menos imponente, mas com muito mais história. Afinal, além de várias finais regionais, foi ali que os Springboks ganharam o Mundial de Rugby de 1995, com Pinnard em campo e Mandela na arquibancada, como contado no filme Invictus.

Não sou contra Copa (como poderia, depois de estar em três?), nem acho que não se pode dar a ela o peso que a FIFA quer, nem as culpas que os críticos impõem. Copa cria emprego e negócios para poucos (os de sempre), não revoluciona cidades ou acaba com seus problemas. Gera, isso sim, algumas obras, um movimento econômico/imagético temporário e um ganho na auto-estima que, se bem aproveitados, podem ter efeitos extraordinariamente positivos. Mal aproveitados, terminam em estádios vazios, cercados de enormes pistas, semáforos desligados. E uma grande desilusão.

Ainda hoje ouvi que uma das “jóias” do Euro 2004 foi colocado à venda no fim de semana. O estádio do União de Leiria, em Portugal, custa mais de um milhão de euros por ano. A cidade não aguenta mais pagar essa conta. Feito para a competição, ele “se pagaria”, com shows, tours, jogos, eventos. Não deu.

Já Londres comemora o “legado”: o bairro do parque olímpico de 2012 já está parcialmente revitalizado, com estações de metrô melhoradas, ruas renovadas. O maior shopping center da Europa fica ao lado do Parque Olímpico, e vai gerar 10 mil empregos.

Que o sorriso de Ifraim, lá no Soccer City, dure por muitos anos. Que ele não tenha, daqui um tempo, vontade de mudar para Londres (ou para o Rio, quem sabe). Nem ter de pedir emprego ali perto, no Museu do Apartheid.

Pra fechar, fotchinha para os coleguinhas. Amigos, abaixo, a real Mandela Square, sem tenda da Sony. Depois que passa a Copa, a vida volta ao normal.