A sobrinha voadora da Bélia

Bélia é a produtora. Você, que vem sempre aqui, já a conhece. Se não, dê uma olhada aqui.

Pois hoje ela estava com ares de preocupada. Enquanto íamos para uma entrevista, contou, no carro, que tinha voltado para casa da mãe. Ela morava sozinha com o filho, na casa de uma tia, que hoje vive na África do Sul.

“Mas o que houve, Bélia?”

“Minha tia começou com umas histórias aí e eu não gostei.”

“Mas algo grave assim?”

“É. Disse que a minha sobrinha é feiticeira e que voa de noite”.

Acusação grave, em se tratando de África. Ainda nesta semana, uma senhora de 80 anos foi linchada em São Tomé e Príncipe. Os vizinhos a acusavam de ser feiticeira. Ela foi agredida até morrer, dentro da própria casa.

A sobrinha da Bélia tem 12 anos. É filha da irmã mais velha dela. Buscando um futuro melhor para a menina, a irmã deixou a “miúda” (aqui chamam assim) ir viver um tempo com a tia na África do Sul, pra estudar, aprender inglês, conviver com os primos.

Pois a mãe da Bélia foi lá no fim de semana só pra buscar a miúda.

Uma vizinha reclamou para a tia que a menina foi na casa dela à noite, fazer uma feitiçaria pra acabar com o casamento dela. Deixou até uns guentos embaixo da cama do casal. Como a porta estava trancada, só uma bruxa teria entrado. Voando.

A Bélia ficou preocupada com a história. “Mas você é Testemunha de Jeová, Bélia. Acredita nisso de bruxa?”

“Eu não, sr. Eduardo. Mas… sei lá, né? Agora vai ficar lá em casa um tempo. E eu briguei com a tia (dona da casa em que eu morava), e fui junto”.

O queixo da Bélia quase caiu quando eu insinuei, de leve, que – talvez, quem sabe – fosse papo do vizinho lá, de olho na menininha que, pelo que entendi, parece ter beeem mais que 12 anos.

Ou ainda o contrário: a inocente menininha não voasse mas, sim, fosse uma jovem bruxa destruidora de lares de vizinhos sulafricanos bem casados.

“Não, não, sr. Eduardo. É só uma miúda. Não é mafiosa, não é bruxa, nem voa”.

Mas, por via das dúvidas, a garota está dormindo na cama da mãe da Bélia. Se levantar vôo, dona Olga Clementina segura pelo pé.

Bélia e as tranças

Você já conhece a Bélia, a produtora (se não conhece, conheça clicando aqui e aqui).

Pois durante minha viagem a Ruanda, ela estreitou laços com minha mulher. Inclusive os laços do cabelo.

E virou entrevistada do Mosanblog. Clique aqui pra ver o Mosanblog.

Aí embaixo você conhece um pouco mais sobre como pensam os jovens daqui.

Bélia e a televisão

O fato do Eduardo e eu sermos um casal, faz com que muitos de nossos leitores conheçam os dois e visitem tanto o Mosanblog quanto o ElefanteNews, o que é bem interessante para nós e cria certa complementariedade em termos de informação para os leitores. Então, quem já visita o ElefanteNews, conhece um pouco a Bélia, que é produtora de TV e trabalha com o Eduardo. Quem não conhece ainda, pode ver os posts sobre ela no ElefanteNews aqui e aqui.
a produtora Bélia

Outro dia ela fez tranças no meu cabelo. Enquanto ela trançava – o que demorou quase três horas – eu aproveitei para fazer uma entrevista. Bélia é uma figura que vale. Nasceu aqui mesmo em Maputo, no bairro Xamanculu, onde viveu até os 12 anos, quando a família se mudou para o bairro das Maotas, onde ela está até hoje. “A mudança foi muito brusca. Para o positivo. Lá as condições eram precárias. Em um terreno, pode ter mais de 50 casas. Na casa onde vivíamos, dividíamos o banheiro com mais seis famílias. Era difícil ficar na bicha [fila, por aqui] de manhã para tomar banho”, lembra.

Então, ela começou a mexer no meu cabelo. Separou um tanto para cá, um tanto para lá, e começou o trança-trança. Eu tinha comprado mechas, para as tranças ficarem todas do mesmo tamanho e volume, como eu expliquei nos últimos posts.
mechas compradas no Mercado Central de Maputo

Mechas que eu comprei no Mercado Central de Maputo, quase da cor do meu cabelo

E eu começo perguntando: Qual é o seu nome completo?
Bélia Enoque Machava.

Mosanblog: De onde vem o nome Bélia?
Bélia: Meus pais sempre gostaram de ter nomes diferentes para os filhos. Quase todos temos nomes exclusivos. Minha mãe gostava de uma cantora chamada Mbilia Bell, africana. Então, ela queria colocar Mbilia. Mas depois ela pensou no Bell. Não sei como, ela juntou os dois e ficou Bélia. Um dia fui achar significados de nomes e achei na bíblia o nome Belial. E não é um nome bom, é um nome negativo. Eu fiquei mal. Mas também, não me imagino com outro nome.

Mosanblog: E as suas irmãs? Como são os nomes?
Bélia: A minha irmã mais velha chama-se Topázia, do nome da pedra preciosa. A outra tem o nome da mamá (mamá é como eles chamam mamãe aqui. É mamá e papá), que chama-se Olga. Depois tem uma que tem o nome de Vinólia, em homenagem a uma sulafricana conhecida por ser super inteligente. Depois veio o menino, que ganhou o nome de meu pai. Enoque José Machava Júnior.

Mosanblog: Você tem um filho, não?
Bélia: Tenho sim, um filhinho. Vai fazer 4 anos dia 30 de agosto. Layton [fala-se Láiton].

Mosanblog: E esse nome?
Bélia: Layton foi o pai que deu, eu nem sei de onde veio. Foi no dia do parto. Eu tinha certeza que era menina. Já vou pensando no nome feminino que vou dar. Ia ser Giovanna. Por causa da novela da Jade, aquela do Clone. Então fui ver o nome real da Jade. Mas quando de repente vi que era um rapazito, nem imaginava que nome dar. O pai falou Layton. Eu gostei na hora. Porque não gosto de coisas vulgares. Tem que ser exclusivo. Que nem Bélia. Meu nome eu só vi em uma mulher em França, na TV. A minha xará está em França! Depois disso eu conheci um Bélio. E só.

Mosanblog: Qual seu objetivo profissional?
Bélia: Sempre tive o sonho de ser repórter, locutora de rádio, apresentadora de TV. Por alguns anos trabalhei como locutora de rádio. Foi emocionante. Fazia aquilo que eu gostava: lidar com música, conversar com os ouvintes…

Mosanblog: Em qual rádio?
Bélia: Passei em várias rádios, uma foi a RTK [aqui a letra k fala-se kapa]. O kapa é de Klinton, o primeiro dono da rádio, mas ele perdeu a vida já há muito tempo… Então, brasileiros compraram a rádio e modificaram para K FM. Lá eu fiz um programa infantil.

Mosanblog: Como era esse programa infantil?
Bélia: Tinha muita música de criança. Eu era fanzona da Eliana. Então, fui fazer o programa. Eu imitava a Eliana. Na escola chamavam-me Eliana de Moçambique. Eu sabia quase tudo dela. Mesmo que na época não tínhamos internet para acessar as informações. Eu ouvia pela rádio e via na televisão Miramar [hoje, Record], que transmitia os programas da Eliana aqui. Aquilo era uma coisa! Aquele mundo colorido… Aqui a gente não estava acostumado a ver aquilo, aqueles cenários bonitos. Aqui não era assim. As crianças conheciam só brincadeira da terra.

Mosanblog: Que brincadeiras vocês faziam nessa época?
Bélia: Uma era a mathocozana. Faz-se uma covinha no solo, de um centímetro, depois arranja-se pedrinhas e coloca-se lá. Eram 12 pedrinhas e uma bolinha, para a bolinha usávamos limão pequenino. Jogava a bola para o alto, tirava e repunha as pedras na covinha e tinha que pegar a bolinha antes dela cair nas pedras. Quando chega o programa da Eliana, saímos daquele mundo. As crianças ficaram muito mais sedentárias, porque só queriam saber de televisão. [Ela está falando de coisas de uma década atrás, mais ou menos].

Mosanblog: E quanto tempo durou seu programa infantil na rádio?
Bélia: Seis meses. Aí mudei. Fiz um de promoção de bebidas. Mas eu não fazia sozinha. Éramos três. Tinha um animador, eu e um outro homem. Comentava sobre a bebida, que estava a patrocinar a rádio. Falávamos com o ouvinte, dávamos a bebida de prêmio, líamos anedotas. Era muito bom, porque estávamos a rir. As bebidas eram Boss Whisky, Dolar Gin, American Queen… eram quatro, mas a quarta já não estou a recordar. Mas eu não bebia, só falava, só.

[E ri. E trança.]

Bélia a trançar e rir

Mosanblog: Por que você queria ser repórter?
Bélia: O sonho sempre foi fazer rádio, televisão. Queria ser apresentadora, igual a Eliana. Mas os sonhos foram mudando. Os programas de jornalismo da Miramar traziam matérias quentes. Eu via uma reportagem, ficava pensando: “como é que conseguiu fazer isso?” Tinha uma repórter que era do Ceará – eu não sei onde é que é isso – eu via o programa para ver o que ela ia fazer, porque ela só fazia matérias boas. Eu ficava no espelho em casa, tipo: tô na televisão. Eu começava a falar: boa noite, está a começar mais um programa… Meu avô queria que eu fosse médica. No décimo ano eu reprovei umas três vezes. E era pelas ciências. Nas letras eu ia bem. Português, história, geografia… Eu passei as letras todas, ciências reprovei tudo. Nas letras, vem uma pergunta difícil, se tu souberes argumentar, vais bem. Nas ciências não. Tens que saber exato. Portanto é difícil fazer medicina. O que acontece é não há nada melhor do que fazer aquilo que nós gostamos.

Mosanblog: Você continua com o mesmo sonho hoje?
Bélia: Hoje meu sonho ainda é fazer jornalismo. Ainda não fiz faculdade de jornalismo, mas eu vou chegar lá. É uma questão de perseverança. Se o que eu quero é isso, vamos lá. Hei de aprender, ainda que não saiba. Estou aprendendo, graças a deus. Vou vasculhando mais. Acredito que a lei é ser curioso.

Mosanblog: Você já assistiu a TV Brasil, para onde trabalha?
Bélia: Já. Quando eu vi: ê! O canal é diferente. Muito mais evoluído com relação aos canais nacionais. Está bem que o Brasil é independente há muito tempo. Moçambique ficou independente há 35 anos. No Brasil, dizem que tem pobreza, mas nós, quando vemos novela não vemos isso. A gente sabe que novela é mentira, mas nós não colocamos isso na cabeça quando vemos. Em tudo o Brasil é evoluído. Futebol. Brasil foi pentacampeão. Músicas. No Brasil, fazem letras incríveis. Moçambique chega lá um dia. O Brasil quando ficou independente também não foi de cá pra lá. Houve um tempo.

[Filosofa… e trança]

Bélia pensa e trança

Mosanblog: Mas mechas não tem no Brasil. Pelo menos não como aqui, em todo canto…
Bélia: Sério? Não é possível. É possível, porque… mas não… dona Sandra! Nas novelas a gente vê aquelas negras. Elas usam mechas sim. Aquilo não é cabelo delas… Mas a maior parte das pessoas no Brasil são brancos. Algumas mechas vendem lá, sim. Com certeza.

Mosanblog: E o que são as tais mechas?
Bélia: Mechas são cabelos que nós africanos usamos junto com o nosso, por termos cabelos que não crescem muito, e é lento, muito lento, não é como os brancos e mulatos. À medida que nós cobiçamos as novelas, começamos a cobiçar aquele cabelo longo, a gingar… É quando inventam-se as mechas. Na época eram menos sofisticadas que as atuais. A gente só trançava. A evolução também trouxe as extensões e fica mesmo cabelo assim, que nem de branco. Cobiçávamos ter cabelo longo, que é possível passar um pente. Quando surgem as extensões, foi um sonho!

[Sonha… e trança]

Bélia não para de trançar

Mosanblog: Quando você começou a trançar seu cabelo e a usar mechas?
Bélia: Desde criança. Eu era maluquinha. Ia numa casa que estavam a trançar e pegava as mechas que restavam no chão. E comecei já a trançar na minha cabeça. Eu aprendi a trançar na minha cabeça. Saía mal, mas eu persistia. Com o tempo comecei a trançar bem. Normalmente a mão de obra é um pouco cara. Se for para gente de fora, ainda mais. As pessoas vão vendo o teu cabelo, a tua roupa e já cobram mais.

Mosanblog: Eu já percebi isso. Tem o preço para os mulungos [estrangeiro, branco] e para os daqui…
Bélia: Aqui é assim. Se estão a ver pessoas claras, com cabelo longo, já pensam que está cheia de dinheiro. Lembram das pessoas da novela e acham que tem dinheiro igual. Olham pra ti e depois estipulam o preço. Cobram 500 meticais o que pode ser 50.

E no fim: Dona Sandra, eu falo tanto… Rádio me estragou. Meu chefe não gostava de colocar música. Ele dizia: “Eu contratei você para falar; para colocar música, saia da minha rádio, eu coloco um disco”. Fiquei assim.

E eu, fiquei assim:

Bélia e o lábaro

Bélia é a produtora (já falei dela aqui. Clique pra ver, que vale.)

Durante os Jogos da CPLP, ela foi comigo ao Parque dos Continuadores, onde aconteciam as finais do atletismo. Estávamos na grama, no meio da pista, assistindo à entrega de medalhas, quando ela manda:

“Sr. Eduardo, o que é lábaro?”

“Ah?”

“Lábaro. Lábaro que ostentas estrelado…”.

Descobri que a Bélia, e milhares de jovens moçambicanas e moçambicanos, também não sabem o que é lábaro (como muitos brasileiros também não sabem), mas conhecem a letra do hino nacional brasileiro (o que muitos brasileiros também não conhecem).

Há algum tempo, o programa Hoje em Dia, do meu amigo Celso Zucatelli, fez uma promoção dando prêmio em dinheiro para quem cantasse o hino inteiro e corretamente. Como a TV Record retransmite o programa na sua TV Record Moçambique (sim, tem uma TV Record Moçambique – canal 5, VHF, aberto) e na também sua TV Record Internacional, milhares de moçambicanos, e – suponho – cabo-verdianos, tomeenses e gente de onde lá mais chegue o sinal delas – acabaram sabendo a) um pouco ao menos do hino brasileiro; e b) que os brasileiros não conhecem o próprio hino a ponto de saber cantá-lo valer prêmio.

Mas, afinal… o que é lábaro mesmo?

É bandeira, como você já sabia, né?. Mas bem que clicou aí no link só pra ter certeza…

Bélia voltou. O cabelo dela não.

Tia Sandra (a Bélia a chama assim sempre), a menina Rosália, e Bélia e outro cabelo

Bélia Machava é a produtora. Machava aqui tem um monte – é o “Silva” de Moçambique. Agora, Bélia… só tem essa. Mesmo.

Ela tem 23 anos e um filho pequeno. Mandou o marido embora porque, segundo ela, era um “mafioso”. Mora longe, no bairro Mahotas. Mas mal percebe a distância porque “vem fazendo amigos no chapa”. Ou seja: falando sem parar, com quem estiver dentro da van.

“Xê!”, diz a Bélia quando se espanta com algo. “Ishh yowê”, diz a Bélia quando fica brava. “Hei de aprender bem, sr. Eduardo”, diz a Bélia quando descobre algo novo que gosta e quer fazer. É esperta, a Bélia. Já apresentou programa de rádio, trabalhou em protocolo de festas chiques e deu aula de dança. Com o seu “hei de aprender”, está mesmo aprendendo. E me ajudando.

Bélia vê muita TV brasileira. Entende tudo o que falam. Mas nem sempre o que querem dizer. Daí ela vem: “Sr. Eduardo, onde é Carapicuíba?” “Sr. Eduardo, o que é caviar?” “Sr. Eduardo, o que é orelhão?”

Pois Bélia ligou segunda-feira achando que estava com uma “malariazinha”. Fez o exame – que sai na hora, igual de gravidez. Era malária mesmo. O de “dois x”. Grave, portanto. Morreu de dor segunda e terça. Ontem tinha sono. Hoje voltou pro serviço. Mas voltou diferente.

Gabriel Jr, Bélia e seu cabelo, e eu

Não foi a primeira vez, aliás. Em um mês trabalhando comigo, é o quarto cabelo da Bélia. O natural é curto. Daí veio com um outro, também curto, mas nem tanto – era, segundo ela, uma “perruca cosida no próprio cabelo. Xê!”. Hoje apareceu de tranças. “Mas fiz no sábado, sr. Eduardo. Antes da malária.”

Tá bom, Bélia, ficou ótimo seu cabelo… “Mas daqui a pouco eu canso e mudo tudo. Ishh…”

Bélia e suas tranças

Então tá, Bélia. Só uma coisa: como eu já falei um milhão de vezes, “sr.” Eduardo é a sua mãe…

“Não, sr. Eduardo. Minha mãe é Clementina”, diz a Bélia, rindo.

Clementina Machava. Machava são várias. Bélia, só uma.