Sudão: é sempre bom ouvir todos os lados

Os americanos querem muito a consulta popular. A ONU apóia. A “comunidade internacional’ se mobiliza. No Sudão – óbvio – tem os a favor e os contra.

Mas, e os africanos? O que pensam disso tudo?

Leiam na Agência Brasil. E aí embaixo.

09/01/2011
Sudaneses do sul começam a votar hoje sobre divisão do país

Eduardo Castro
Correspondente da EBC na África

Maputo (Moçambique) – Apontada pela comunidade internacional como um “marco para a consolidação da paz” no Sudão, a consulta popular que deve dividir o maior país da África inquieta estudiosos africanos consultados pela Agência Brasil.

De hoje (9) até 15 de janeiro, os sudaneses do sul votam na consulta popular prevista no acordo de paz que pôs fim à guerra civil, que durou mais de 20 anos no país. Quatro milhões dos 40 milhões de sudaneses irão dizer se querem ou não que a parte Sul torne-se uma nação independente. Os resultados serão homologados em fevereiro.

Para o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter, um dos observadores internacionais, “o referendo é um passo crítico no sentido da implementação do acordo de paz”. Segundo ele, citado pelo Carter Center, a expectativa é de que “o processo ajude o povo do Sudão a trabalhar em um futuro pacífico, independentemente do resultado [da votação]”.

O centro presidido por Carter enviou mais de 100 observadores para acompanhar a consulta popular sudanesa. O ex-secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o ganês Kofi Annan, também estará presente. “É importante que todos os líderes políticos honrem os compromissos para manter a paz no Sudão, como o previsto no acordo de paz”, afirmou.

Mas, entre os analistas africanos, a certeza não é tão grande. “Isto não é bom na história política de África”, afirma Aly Jamal, doutor em relações internacionais e especializado em conflitos africanos. “Isso pode ser um mal exemplo para alguns países onde as circunstâncias não são iguais, mas podem ser procuradas para justificar o uso do mesmo caminho”, disse. “Já temos o caso do Congo, a República Centro Africana… se um rastilho semelhante ocorre por aquelas bandas, vamos fazer referendo para autodeterminação?”, pergunta Aly Jamal.

Citado pelo jornal moçambicano O País, o investigador do Instituto de Ciências Políticas em Paris, o sudanês Roland Marchal, chama o processo no Sudão de “Berlim 2”, lembrando que foi na Conferência de Berlim, em 1885, que as potências europeias dividiram a África entre si, demarcando fronteiras sem levar em conta, em muitos casos, aspectos culturais, sociais e étnicos das comunidades atingidas.

Para a professora Iraê Baptista Lundin, do Instituto Superior de Relações Internacionais de Moçambique e que participou do grupo que negociou a paz para guerra civil do país (entre 1992 e 1994) trata-se da quebra de outro tratado, mais recente. “Em 1963, quando foi criada a Organização dos Estados Africanos, foi definido que as fronteiras iriam permanecer, para não criar mais problemas. Já quebramos esse tratado quando separou-se Eritreia da Etiópia (em 1993). Se acontecer a separação do Sudão será a segunda vez.”

Entretanto, lembra a professora, a Eritreia já havia existido como estado separado, o que não ocorre com o Sudão do Sul. Em 1962, logo depois da independência da Itália, a Eritreia foi anexada à Etiópia. Após uma guerra de mais de 30 anos, votou a favor da sua separação em 1993.

“O ideal teria sido discutir mais autonomia, instituir o federalismo”, defende Iraê Lundin. “Nigéria e África do Sul têm, hoje, estados federados. A história mostra que é possível encontrar outras saídas. Tenho receio de que [a possível divisão] vá exacerbar um conflito que, neste momento, está latente – e é um dos mais antigos de África.”

O professor Aly Jamal concorda. “A comunidade internacional ficou satisfeita com a simples ideia de ‘vamos fazer a paz. Vamos determinar o que que eles querem’… Mas não foi atrás daquilo que, objetivamente, tem a sido causa de todos os problemas”, afirma. “Se, pelo menos, o referendo ocorresse com uma delimitação bastante clara sobre o traçado de fronteira, traria mais tranquilidade. Mas isso ficou para depois”.

Os especialistas dizem, porém, que o temor não é de um conflito imediato. “O Sul não tem interesse em entrar numa guerra logo depois de formar-se como estado autônomo”, diz Aly Jamal. “Nem o Norte, certamente, quererá se envolver nisso”. O tempo até que a tesão renasça não depende só dos sudaneses. “Quem tem interesse no petróleo e nas outras riquezas que estão ali vai tem um importante papel na moderação”, diz Aly Jamal. “Com um país ou dois, elas vão continuar existindo”.

Edição: Aécio Amado

Vai ter guerra de novo da Costa do Marfim? Depende, diz quem sabe

Depende de Laurent Gbagbo e do jeito que o tratarem. Ouvi isso de dois especialistas em conflito e negociações na África. Um bem longe do outro, aliás.

As entrevistas renderam bem mais que a reportagem que está ai embaixo. Vou publicar outras nos próximos dias, sobre Sudão e eleições na África em que eles vão aparecer de novo.

Em breve.

04/01/2011
Líderes africanos e acadêmicos defendem solução negociada para crise na Costa do Marfim

Eduardo Castro
Correspondente da EBC na África

Maputo (Moçambique) – Laurent Gbagbo não pretende deixar o poder na Costa do Marfim. A posição de Gbabo ficou clara para a comissão que representa a União Africana e a Comunidade Econômica da África Ocidental (Ecowas, na sigla em inglês) nas negociações em torno do impasse criado pelo resultado das eleições marfinesas. A comunidade internacional não aceita a permanência de Gbabo na presidência e exige que o oposicionista Alassane Ouattarra assuma o poder, respeitando o resultado das últimas eleições presidenciais.

“Nesse momento, podemos dizer apenas que as discussões prosseguem”, afirmou o presidente de Serra Leoa, Ernest Bai Koroma, citado pelas agências internacionais. Junto com ele, Pedro Pires, de Cabo Verde, Bon Yayi, do Benim, e o primeiro-ministro do Quênia, Rayla Odinga, mantiveram em Abdijan (maior cidade marfinesa) reuniões com os dois protagonistas da crise, Gbagbo e Ouattarra.

Em 28 de novembro do ano passado, Gbagbo e Ouattarra – opositores políticos e de etnias diferentes – concorreram na primeira eleição presidencial da Costa do Marfim em dez anos. A oposição foi declarada vencedora pela Comissão Eleitoral. Mas a Corte Suprema do país reviu os números, alegando fraude, e deu a vitória ao presidente Gbabo.

As Nações Unidas (ONU), a Ecowas, a União Africana e outros organismos multilaterais, além de vários países individualmente, acusam Gbabo de subverter a vontade popular ao permanecer no poder. Apoiadores de Gbagbo, porém, alegam que ele foi legitimamente reeleito e que a decisão da Corte Suprema é soberana, independente e está de acordo com a Constituição do país.

Foi a segunda vez que o grupo de líderes africanos esteve com os dois lados em litígio, em mais uma tentativa de evitar a repetição da guerra civil que, em 2002, confrontou o Norte e o Sul do país, depois de uma tentativa de golpe de Estado. A ONU estima que, desde o segundo turno das eleições, mais de 200 marfinenses morreram em choques entre grupos rivais.

As palavras de Ernest Bai Koroma indicam que, apesar de a Ecowas já ter anunciado que poderá usar “força legítima” para fazer valer o que considera ser o resultado legal das urnas, ainda há espaço para a negociação. Para especialistas em política africana ouvidos pela Agência Brasil, a negociação ainda é um caminho possível de ser trilhado.

“Nessa altura, ainda é possível termos uma solução, desde que o presidente Gbagbo não se sinta totalmente desprezado em termos políticos”, afirmou o moçambicano Aly Jamal, doutor em relações internacionais especializado em conflitos africanos. “Ele [Gbabo] precisa de alguma forma de proteção ou imunidade. Não se pode, agora, confrontá-lo com a possibilidade de levá-lo a um tribunal internacional se queremos preservar uma situação fora da guerra”, disse Jamal.

Para Aly Jamal, ainda que reter o poder depois de eventualmente perder uma eleição seja um ato inaceitável e contrário às regras democráticas, o momento histórico pelo qual passa a Costa do Marfim deve ser levado em conta nas negociações. “É necessário entender que o que se passa na Costa do Marfim não é a transferência de poder de uma democracia consolidada”, alerta o professor. “É a tentativa, também, de se por um fim a uma situação de conflito, que é muito recente.”

A professor Iraê Baptista Lundin, chefe do Departamento de Estudos Sociopolíticos e Culturais do Instituto Superior de Relações Internacionais de Moçambique, concorda com o colega de academia, mas aponta um problema: o que fazer com Gbabo, se ele deixar o poder. “O problema da alternância política na África ainda é complexo e está ligado a não haver, ainda, na maior parte dos países, um lugar de destaque para o ex-governante”, explicou ela. “Ou está no governo ou está numa situação difícil, muitas vezes com sua vida em perigo.”

A professora Iraê Lundin participou do grupo que negociou a paz em Moçambique, entre 1992 e 1994, depois de 16 anos de guerra civil. Ela defende uma saída parecida para a Costa do Marfim. “Nós preferimos a solução mais inclusiva”, lembra. “Aqui [em Moçambique], até hoje, [o ex-líder guerrilheiro Afonso] Dlakama é líder da oposição. A África precisa caminhar para soluções com a cultura da África, que é a cultura da integração, da transformação.”

Nascida no Brasil, Iraê vive na África há 30 anos. Presa política na ditadura militar, ela perdeu a cidadania brasileira depois de cumprir pena em Barra do Piraí (RJ). Estudou na então União Soviética, na Suécia e fixou residência em Moçambique, onde leciona no instituto que prepara diplomatas para o país e outras nações africanas.

Edição: Vinicius Doria