O risco que Lourenço Marques correu

O espaço hoje é ocupado por um leitor do ElefanteNews – Fernando Cruz – que mandou a história abaixo. Como segue o espírito do blog, passo a ele a palavra…

“Era o ano de 1974 logo após os eventos do 7 de setembro (NE: data em que, em 1974, foi assinado o Acordo de Lusaka, que deu a independência à Moçambique. Mas a troca de poder efetivou-se somente em 25 de junho de 1975).

Havia nessa altura um tanque de amónia líquida a 100 metros do muro oeste da fábrica de cimento. Se forem ao GoogleEarth ainda podem ver os vestígios de uma plataforma circular onde se encontrava o tanque, junto aos restos de um edifício, que era onde as bombas de compressão estavam instaladas. Mais tarde este tanque, o maior dos 3, foi deslocado para o actual poiso, a 800 metros a oeste (+ ou -) do local original. Também dá para ver na GoogleEarth.

Bom, o tanque continha amónia líquida, mas quando havia muito calor e o tanque estava pouco cheio, as bombas não davam conta do recado, a pressão dentro do tanque subia demasiado, e nessas alturas era preciso soltar amónia em vapor pela válvula de segurança (segurança para o tanque) no topo do tanque.

Ora se o vento soprasse de sul, essa amónia espalhava-se pelos bairros da Matola. Toda a gente cheirava a amónia. Os olhos das pessoas até ardiam um pouco, mas como com a amónia desapareciam os mosquitos, ninguém se queixava. Até dava jeito. E assim viviamos em equilíbrio um tanto instável.

Deram-se os acontecimentos do 7 de Setembro. Aquela zona toda nas proximidades do Rádio Clube de Moçambique estava em pé de guerra e bloqueada por militares. Ninguém conseguia sair de casa, muito menos ir à Matola, e muito menos meter pela estrada que servia o tanque para inspecionar a instalação.

Durante uns dias eu transpirei como nunca me lembro ter transpirado, e acho que até esgotei a lista dos deuses a quem rezei. Só me corria pela cabeça falta de electricidade, paragem das bombas compressoras, aumento desmedido da pressão da amónia no tanque, válvula de segurança a disparar, e amónia em vapor a sair, levada pelo vento, em quantidades suficientes para matar muita gente na Matola.

Ninguém sabia de nada. As estradas estavam bloqueadas. Eu só imaginava pior. Até que, passados esses poucos mas intermináveis dias, consegui, com um colega, meter-me no jipe e ir tentar averiguar o que se passava com o tanque.

À entrada da estrada de acesso encontrei-me com um soldado da Frelimo que montava guarda àquela zona e não nos deixava passar. Finalmente o convenci que o caso poderia ser grave e ele precisava de ajudar. Foi então connosco no jipe, não fossemos nós tentar sabotar aquela coisa.

Estava tudo calmo e sereno. Não tinha havido fugas de amónia. Ninguém tinha morrido por causa da amónia. E lá estava o nosso empregado shangana que pouco disse. Quando lhe perguntámos se tinha havido fugas de amónia, só nos disse – aiiinda!

Tudo tinha voltado ao normal, não sei como nem por quem. Mas tenho grandes suspeitas do nosso empregado shangana. Dos mosquitos sobreviventes nada soube”.

“Receba as flores que lhe dou…”

Quem acha que festa de três dias é invenção nova, coisa de rave, nunca esteve num casamento aqui em Moçambique.

Fomos a um na sexta-feira à noite. Casamento de um casal casado, aliás. Amadeu é o irmão mais velho de um grande amigo, Gabriel Junior – que vem a ser o apresentador de televisão mais famoso de Moçambique, que faz o “Moçambique em Concerto”, um programa de auditório no domindo à tarde com alto índice de audiência, aqui e na África toda, graças ao satélite. Pois depois de 25 anos junto com Eugênia e com três filhos crescidos, Amadeu chamou a família toda (são sete irmãos dele e mais tantos dela) pra efetivamente casar. O Gabriel chamou a mim. E eu levei minha família toda aqui – eu e Sandra.

Amadeu montou uma tenda para 150 convivas no jardim de casa. Ele vive numa cidade grudada em Maputo, Matola, onde os terrenos são grandes. Fez pista de dança, chamou banda, armou uma bela decoração. “Nossa, quanta gente”, disse brazuca cá ao chegar no lugar. “Vai ficar cheio até domingo”, disse o Gabriel. Pois é festa hoje, sexta, das 19:30 às 3 da manhã. Festa amanhã, sábado, das 2 da tarde à hora de for. Festa domingo, com um almoço “só pra família” de oito irmãos, e o decorrente número de cônjuges, sobrinhos, tios, e tal. E é sempre assim. De acordo com as posses, claro, muda o estilo. Mas a festa é sempre longa, dura dias.

Gabriel é de Tete, no norte de Moçambique, criado em outra cidade, a Beira, que fica no centro do país. Duas áreas com forte influência de muçulmanos e hindus. Dois povos festeiros, misturados aos que eram daqui já, deu em casórios deste tamanho. A lua de mel que é curta. Uma noite só, muitas vezes. E os noivos voltam a trabalhar.

O povo da Beira fala sena, uma das vinte e tantas (uns contam 23, outros até 28) línguas das várias regiões de Moçambique. Quando os sucessos cantados em sena pintavam nos picapes, a pista enchia na hora. O maior deles, “Chiripo?” – que numa tradução livre seria “Qualé o seu problema?”. Um sujeito que diz que dá tudo pra mulher e ela só reclama. Talvez – assim, digamos – não tão apropriado pra tocar em casamento. Mas, como eles dizem aqui, “esteve a bater” – fez um sucesso miserável.

Aliás, falando em expressões locais… um dos sobrinhos vai ao microfone homenagear os tios e parabeniza o “casal de fresco”. Não é isso não, brazuca tonto. “Casal de fresco” é o novo casal, recém-casado. Fresco, portanto.

Forte influência hindu e muçulmana, mas muita música brasileira, pá. Só Robertão foram umas cinco. Axé. Garota de Ipanema. Bruno e Marrone. E o momento mais solene da noite foi ao som de Nílton César (lembra dele? Não confundir com o preclaro Nílson César, que narra futebol na Jovem Pan).

A juíza de paz, aqui chamada de “conservadora” (aliás, por que chamamos o oficial que celebra casamentos de “juiz de paz”? Devia ser o título do cara que faz divórcio…) leu os proclamas, fez lá as mesuras de praxe (iguais às nossas, afora o fato de ter dito quantos anos a noiva tinha – o que no Brasil causaria choro e ranger de dentes de algumas nubentes). “É de livre e espontânea vontade”, “sim, sim”, tal. Trocam as alianças. E a conservadora diz “e agora o noivo pode cumprimentar a noiva”. Neste momento é que vem Nilton César, trazido pelos dedos ágeis do DJ: “Receba as flores que lhe dooooou…e em cada flor um beijo meeeeu….”

Um clássico.

PS: Ouvi dizer que as cerimônias religiosas são interessantes pra nós porque têm elementos misturados de todas as influências daqui: crenças africanas, hinduísmo, islamismo, catolicismo, protestantismo – o povo fala até em “sotaque da Igreja Universal”, diga-se. Prometo relatos circunstanciados. E, por óbvio, reportagens na TV.