Tribunal Tradicional para Feiticeiros

Hoje o texto é do coleguinha Albino Moisés, que escreve uma coluna no jornal Notícias.

Para que não haja dúvida:

a) “chapa 100” vem entre aspas porque, aqui, é o nome popular das vans do transporte (de acordo com a denominação legal) “semi-colectivo”. Eu chamaria de “semi-transporte”, porque o povo é carregado como gado;

b) “Régulo” é a autoridade tradicional de uma determinada região. Eles tem poderes (até hoje) para resolver questões relacionadas à comunidade. São consultados até quando o Estado vai destinar terras para um empreendimento novo (lembre-se que aqui não há propriedade privada da terra O estado faz concessões de uso). O régulo mostra onde não pode receber construção por ser um cemitério, por exemplo.

c) “Machamba” é plantação, área agrícola familiar. Fazendão do agronegócio é “farms”.

d) “tungululo” ou “kulungwana” são aqueles gritos de alegria típico dos muçulmanos, bem agudos, também muitos cimuns aqui também.

Vencido o glossário, tem a palavra o convidado… em texto tal e qual copiado do jornal.

“Na minha aldeia — Majaua em Morrumbala — nunca se morre de morte natural. Qualquer morte é tida como tendo sido orquestrada por alguém: o feiticeiro.

O feiticeiro é o ponto de partida para todos os falecimentos que ocorrem na povoação. Mesmo na idade dourada de oitenta, noventa ou até “chapa 100”, os familiares do finado sempre colocam as garras do feiticeiro na berlinda. E quase sempre toda a morte tem envolvimento e conivência directa de um familiar próximo identificado: uma tia, tio ou avô (materna ou paterna).

E havia acusações indirectas e outras até directas às pessoas que se acreditavam terem praticado o feitiço contra outrem. Algumas acusações eram mesmo directas: batiam na porta do feiticeiro e atiravam-lhe na cara: “tu mataste o nosso filho, devolva-lhe já a vida, ou então seguirás tu também pelo mesmo caminho!”. E se o acusado se mostrasse indignado, então ele lançava um “repto” para provar a sua inocência.

Seguidamente, iam ao “mwene” (régulo) comunicar a acusação ao mesmo tempo que pediam autorização (sempre irrecusável) para levar a cabo o rito tradicional denominado “muavi”. Nele o acusado era desafiado a beber uma poção de raízes que só vomitava quem de facto fosse inocente. No caso contrário a morte era certa!

E esse tribunal tradicional não só se destinava a dirimir casos de suspeita de morte por feitiçaria, mas igualmente servia para atender roubos nas machambas e até cenas de amantismo. Especialmente para problemas sem provas materiais e que não houve flagante delito, então todos os “indiciados” eram levados ao tribunal de “muavi”.

A sessão era anunciada na povoação através do rufar vigoroso dos tambores. Fixava-se uma hora de realização. A sessão pública atraía muitos mirones, arrastando até aldeões circunvizinhos. Como era um assunto social que andava na boca do povo, então a casa do curandeiro lotava completamente, já que, por regra, as pessos gostam sempre de saber da vida alheia.

Na hora, o povo se reunia em volta dos acusados, queixosos e “corpo de juízes”. A cermimónia iniciava com todo aquele salamaleque dirigido ao curandeiro que orientava o acto de vida ou morte. O acusado de ser feiticieiro, antes de lhe darem a poção fatídica para tomar, primeiro ele prestava um juramento acerca da sua inocência: “juro por minha ohonra que eu sou inocente e desafio a todos aqui presentes a minha inocência, bebendo desta poção que me será servida dentro de instantes. Se eu for um feiticeiro, que eu também morra imediatamente, mas se não matei ninguém, então que eu vomite, provando ma minha inocência. De seguida era-lhe dado o copo para beber diante da multidão.

Se no acto público o acusado vomitasse, isso provava indiscutivelmente a sua inocência. O vómito significava que o suspeito “sacudia o capote” todas as queixas sobre os seus ombros. Naquela hora, a ala de familiares que também defendia a sua inocência jubilava com palmas e “tungululo” (kulungwana para a região sul). A alegria era porque a pessoa recuperava a sua honra e reputaç]ao,mas tambem porque receberia indemnização pela acusação infundada, geralmente paga com uma machamba ou mesmo em dinheiro.

Todavia, para aquele que bebesse do veneno e o seu estômago aceitasse acomodá-lo tranquilamente e não vomitasse, então caía inerte. O seu corpo era exibido a todos como um troféu e ainda como prova manifesta de quem tinha comido carne humana!”