O Som Ao Redor – Mais um 11 de Setembro

14 anos dos atentados de 11 de setembro de 2001.
É um dia complicado pra mim. Mistura muitas emoções e memórias, boas e ruins.
Não é bom lembrar da violência, do pânico, da dor, das mortes do dia.
Também é péssimo pensar nas causas e nos efeitos.
Hoje o mundo é mais preconceituoso, mais racista, mais complexo, mais intolerante, mais pobre e mais inseguro que em 10 de setembro de 2001.
Do outro lado, resta a lembrança do trabalho realizado em meio à incerteza, ao medo, a dor, a dúvida – que era de todos nós. Não sabíamos o que estava acontecendo, nem o que poderia acontecer em alguns minutos, horas, dias – ou 14 anos.
Me restava contar o que via – na TV, na minha janela (a foto que ilustra este post) e na minha frente.

Clique aqui para ouvir o relato ao vivo, na Rádio bandeirantes e na Bandnews TV

É a primeira vez que eu republico esses sons. Durante esses 14 anos, ficaram nos meus arquivos. O querido Milton Parrom, no seu programa Memória, mostrou o registro algum tempo atrás.
Transmiti ao vivo por quase 12 horas. No meio delas, tivemos que sair correndo do prédio, que ficava pertinho do Pentágono. Foi só um susto. Mais um, porque mais cedo, nós sentimos o impacto. Corri para a janela porque as janelas tremeram. Graças a isso, comecei a relatar o que ocorrida em Washington antes das primeiras imagens.
Foi marcante na minha vida, na minha carreira e na vida de muita gente.
Alguns dias depois de 11 de setembro de 2001, recebi um email (naquela época se usava email…) de um casal que estava com lua-de-mel marcada para a Disney. Queriam saber o que eu achava: se deveriam ir ou não.
Fiquei impressionado com aquilo, alguém confiar em mim para tomar uma decisão tão significativa pra eles. Também me ajudou muito a entender que o tom que usamos para contar as coisas, muitas vezes, tem mais força sobre o ouvinte/leitor/espectador que a mensagem em si. Afinal, eles ficaram preocupados com o “clima”. Não havia nada que indicasse que outros ataques poderiam ocorrer, nem que seriam na Disney.
Passei a me policiar mais nesse aspecto.
Quando se completaram dez anos do ocorrido, eu morava em Maputo, Moçambique, numa outra experiência de ter como obrigação trazer o mundo – um outro mundo, diga-se – mais perto dos brasileiros.
E recebi a mensagem que reproduzo aí embaixo, guardada com muito carinho.
Sinal de que valeu a pena – apesar de, hoje, ver que, para as empresas jornalísticas, no geral, fazer bem o nosso serviço faz pouca diferença.
Mas como se verifica aí embaixo, a gente não sai da memória do destinatário do nosso serviço: quem nos lê, nos vê e nos ouve.

“Prezado jornalista Eduardo Castro:

Meu nome é Edna Guisard Thaumaturgo, viúva, 68 anos, residente em Taubaté-SP,formação acadêmica em História.

Já faz bastante tempo que procuro me informar onde o senhor estaria trabalhando, visto que causou-me grande impressão a sua participação como correspondente nos Estados Unidos durante o episódio de 11/09. Nunca mais ouvi uma reportagem com tanta vibração, que me marcou profundamente pela veracidade e dedicação com que o senhor desenvolveu o seu trabalho jornalístico naquele fatídico dia. Procurei depois de algum tempo me informar sobre o seu trabalho mas foi difícil. Estou feliz de saber que o senhor continua trabalhando, agora em terras da Africa.

Parabéns por ter sabido ouvir a voz de seu coração e ter conseguido passar as informações que tanto marcaram a minha vida, como a de outros milhares de ouvintes assíduos da Radio Bandeirantes AM . Reconheço que estou um pouco atrasada em poder conversar por e mail com o senhor. O tempo passou mas a emoção é a mesma.

Seja feliz com sua família e em sua profissão. O senhor merece.”

11:09 pentágono

Sobre morte e vida, Bin Laden e minha avó

Em 1991, eu fazia intercâmbio nos Estados Unidos. Interior dos Estados Unidos – Santa Fé, Novo México. Naquele tempo não havia e-mail ou celular, e interurbano era caro. Nos seis meses em que estive por lá, no geral, matava minhas saudades por carta.

Numa delas, que recebi dois dias antes do meu aniversário, minha mãe me contou sobre a morte da minha avó. Ela não ligou, preferiu escrever. Pôs lá todos os detalhes, que eu li com o coração doendo. Eu amava muito minha avó. Nunca tive babá. Quem cuidou de mim foi minha mãe, meu pai, minha tia e minha avó. Uma parte de mim morreu com ela.

Minha mãe fez muito bem em me contar por carta. Sabia que, se telefonasse, eu iria querer voltar, pra estar lá no enterro. Sabendo por carta, não houve como. O velório e o enterro já tinham passado. Na época fiquei meio chateado, mas, hoje, agradeço muito minha mãe. Não tinha idéia que esse gesto dela me ensinasse tanto sobre a viver a vida.

Dez anos depois disso, em 2001, eu estava de volta aos Estados Unidos, agora casado e trabalhando. Em 11 de setembro, um dos aviões sequestrados (sim, foi avião) passou por cima do meu prédio e estatelou-se no Pentágono, dois quilômetros mais adiante. Eu estava transmitindo ao vivo naquele momento, contando o que via pela TV sobre as torres gêmeas de Nova York. Passei a narrar também o que se vivia na minha vizinhança.

Logo uns dias depois já sentia a mudança no clima do país, no jeito que as pessoas olhavam para os outros na rua. A tal “sensação de unidade nacional”, tão falada e aplaudida, seguramente não era para todos. Quem usava véu, barba, tinha nome árabe ou pele mais parda não se sentia incluído na tal unidade. Nos anos seguintes, as dificuldades econômicas fizeram com que muito mais gente engordasse esse grupo dos de fora.

O que mais me impressionou foi a raiva. O americano médio, meus vizinhos (e eu viva numa área cheia de militares), exigia “justiça” – o que, era muito claro, significava ir lá buscar e matar o responsável pelos atentados. “Justiça”, nesse caso, era vingança mesmo. Revanche. Desforra.

E tudo muito natural. Em nenhum momento vi alguém levantar um “e se?” “E se” isso provocar mais violência? “E se” o culpado não for um só? “E se” o culpado formos nós mesmos, com nossa atitude com relação aos outros?” Muito menos um “‘pera lá: isso é certo?” Nada. Alguém era culpado, inocentes morreram. Isso não podia ficar assim.

As famílias das vítimas também pensavam desta forma, na amplíssima maioria. Queriam “justiça”. Nada traria seus parentes de volta. Mas encontrar e punir o culpado daria “um fechamento”- “closure”, é o termo repetido várias vezes – para esta triste história. Sem esse “fechamento” não era possível ir adiante. Vi muito psicólogo explicando que isso era normal, inclusive.

E assim seguiram-se dez anos à espera do “closure”. Filhos cresceram sem os pais, acreditando que, um dia, isso viria e que, depois desse dia, finalmente, era possível seguir em frente – “move on”.

Pois domingo à noite, muitos saíram à rua, comemorando a “vitória”, a “justiça”. “Finalmente, o fim dessa história”.

Imagino a tristeza de quem, hoje, três dias depois da morte de Osama – o esperadíssimo “closure” para o 11 de Setembro – ainda não viu a dor ir embora. Será que a saudade diminuiu, ou a dificuldade de ter perdido o pai ou a mãe passou?

Aqui da África, fico incomodado ao ver americanos (não são todos, mas são vários e ruidosos) transformando a morte de alguém – mesmo a de um crápula desequilibrado e perigoso – em um réveillon. Não sou só eu. Muitos moçambicanos, que saíram de uma guerra civil há menos de 20 anos e convivem com a fome bem perto, também não conseguem compreender o motivo de tanta alegria. Eles não querem vingança, nem sequer falam em justiça. Querem é viver.

É quando lembro de minha mãe, sabiamente me ensinando, quando da morte de minha avó, que tanto faz ver o corpo, dar o último beijo no corpo inerte, derramar a “última lágrima na beira do caixão”. O que fica não é isso. É todo o resto. A história, quando é boa, não acaba no cemitério. Não precisa de “closure”.

“Ah, mas ninguém a matou! Ninguém tirou sua avó de você com violência! Queria ver se tivesse sido assim”.

Seria igual, garanto. O que matou minha avó foi o câncer, foi a vida dura que ela levou para criar três filhos, viúva, na grande cidade. Foi ter deixado sua terra criança e nunca mais ter voltado. Foi a saudade de meu avô, que morreu quando minha mãe tinha só três anos. Foi comer carne vermelha, verdura com agrotóxico, leite com hormônio, margarina com gordura vegetal. Foi respirar ar com fumaça, sovar a massa do pão e fazer macarrão todo domingo, tomar metrô de madrugada, cuidar dos netos no clube.

Não há como me vingar de tudo isso.

O que matou minha avó foi a vida, que é o que nos mata a todos. O câncer, o tiro, a facada, a gripe, o golpe de ar, a queda do avião, o avião usado como míssil – o que fosse – é detalhe. Chame de “closure”, se fizer tanta questão.

A morte, seja como for, revolta na hora. Mas se essa revolta da morte durar para sempre vai esconder o que realmente foi importante: a vida. É duro de engolir – principalmente para quem costuma fazer prevalecer sempre sua vontade e não aceita que suas razões sejam sequer discutidas – mas tem coisa que não tem jeito. Nem força.

A presença da minha avó é imensa, feliz, alegre, atual, quase física. E não se trata de nada religioso. Um bandido, um motorista bêbado ou o Osama não teriam força pra mudar isso.

Por falar em algo religioso, é cristão (ou muçulmano, diga-se) comemorar a morte de alguém?

A saudade não passa nunca. Aprendi a conviver com ela. Até porque não há o que traga dona Ida de volta, não há o que diminua a falta que ela faz. Se descobrirem a cura do câncer hoje, ou provarem que o médico dela errou, não sairei gritando pela rua, fazendo o “V” de vitória.

Não há “closure” para quem vive a vida. Nem quero que haja. Quero mais é que as memórias fiquem.

Elas são intermináveis.