Português, esse desconhecido

Já pensava em escrever sobre o uso da língua portuguesa quando, na imprensa brasileira, surge mais essa falsa polêmica aí, do “português culto x português das ruas”. Não quero entrar nisso – dá uma preguiça miserável. E, além, já há quem esteja empenhado nessa tarefa (Hélio Schwartsman, da Folha, por exemplo). Freud não explica porque, de um tempo pra cá, não é o sexo que motiva absolutamente tudo no Brasil, e sim a paixão partidária e o ódio de classe.

Mas essa questão da “posse” do idioma tem me chamado muita atenção neste ano e tal que vivo aqui na África. Diferentemente dos vizinhos, Moçambique tem só o português como língua oficial. Mesmo assim, ele é falado, se tanto, por 40% dos habitantes. E ainda assim, é o idioma mais falado no país.

A maioria da população fala outras línguas – cerca de 25. Xangana, ronga, sena, macua, ndau, shona, maconde. Línguas mesmo, com estruturas e vocabulários diferentes entre si. Algumas, claro, têm semelhanças. Mas, como regra geral, o norte não entende o centro, que não entende o sul, que não entende o norte. Para comunicação entre os grupos – a chamada “unidade nacional”- só mesmo o português.

Mas o português é a língua do branco, do estrangeiro, do colonizador, do opressor. E, aqui, a independência é muito presente, mais nova do que eu (é de 1975). Ao contrário dos vizinhos que colocaram inglês e as línguas locais como idiomas em pé de igualdade, a opção moçambicana foi não escolher uma, duas ou três para serem oficiais. Uma decisão controversa, porém bem pensada.

Dizia Samora Machel, herói da independência, homenageado até hoje em todas as notas de metical (que é o dinheiro daqui), primeiro presidente de Moçambique: “o português é como uma ‘G-3”(arma do exército colonial português) – nos oprime nas mãos do inimigo; mas, nas nossas, nos liberta”.

Faz todo sentido. Como escolher, entre 25 ou mais idiomas, qual ser o “idioma moçambicano”. Todos? Impossível. Alguns? Quais? Do sul? Centro? Norte? Por que este e não aquele? Qualquer – ou quaisquer – que fosse o escolhido, estaria oprimindo os demais. Optar pelo português, depois que o colonizador português foi embora, foi escolher a língua de ninguém, na tentativa de fazê-la a língua de todos.

O erro, no meu entendimento, foi deixar as demais línguas para segundo plano. Há pouco tempo começou um trabalho para ensinar as línguas maternas e em línguas maternas nas escolas (até visitei uma delas no interior – clique aqui pra ver). Ao renegar as línguas locais e não ter força para ensinar o português para todos (é um dos países mais pobres do mundo), o governo conseguiu aumentar o ódio contra o idioma oficial – e que nunca deixou de ser visto como a “língua do outro, do opressor”.

Hoje há um movimento, grande até, para que Moçambique abandone o português e opte por uma ou várias línguas locais. A meu ver, é um risco até físico. Poderia exacerbar diferenças regionais e tribais adormecidas e até colocar em xeque até a recentíssima paz, conquistada em 1994, com o fim da guerra civil de 16 anos, que punha frente a frente grupos com ideologias diferentes, mas, também, os do sul contra os do norte.

Outro grupo gostaria de introduzir o inglês como língua oficial, já que “é o idioma dos negócios internacionais”, “todos os países vizinhos falam a língua, e isso facilitaria a obtenção de emprego, comércio”, tal. Conversa: se fosse pra ser assim, já aconteceria entre Zimbábue, Zâmbia, Tanzânia, África do Sul e não acontece. Além de ser velho esse papo de que, se falar língua de primeiro mundo, vira primeiro mundo também. Fora os cinco lusófonos, toda a África subsaariana fala inglês ou francês. E não me consta que seja exatamente um mar de prosperidade.

“Que cada um fale sua língua, então!” Concordo. E uma dessas línguas deve ser – não há como fugir – o português. Afinal, ela é de todos os moçambicanos. E alguns (negros, inclusive) falam só ela. “Não, é a língua do colonizador e deveria ir embora com ele.” Aí é esquecer de Samora.

Se tem algo que o colonizador não consegue levar embora é a língua que ele trouxe. Oprimia na mão dele; na minha, me liberta. Me insere no mundo exterior, inclusive no do colonizador. Passo a ter a possibilidade mínima e mais básica de ter contato com aquilo que ele sabe, além do que eu já sei. É certo que, com o idioma, não se tem tudo. Mas sem ele não se tem nada deste novo conjunto.

Também liberta na medida em que coloca em pé de igualdade todas as demais línguas nacionais, sem as do sul sobrepujarem as norte, ou as norte dominarem as do sul. “Ah, mas há países em que isso aconteceu”. É, mas se o discurso é o de “preservar as culturas locais”, como é que um local quer que sua cultura prevaleça sobre a do outro? Isso chama-se tribalismo, diria Samora.

E nada me impede ter mais que uma língua. Português não é língua materna de muitos moçambicanos, mas é a língua nativa de todos eles. Feliz do país em que a população nasce, no mínimo, bilíngue. Inglês? Que se ensine desde sempre, ao lado das outros idiomas que, de um jeito ou outro, já fazem parte da identidade nacional daqui. E, bom lembrar, do Brasil também.

Não sou linguista nem gramático, mas não vejo o Português como um único idioma. Cada lugar fala o seu português, com suas formas, vocabulário, ritmo, sotaque, cadência absolutamente próprios. O que se usa aqui não faz sentido lá. E… hummm, o que é considerado certo aqui, nem sempre é lá. E daí? Como fica? Quem está certo e quem está errado?

Ponto, parágrafo: não defendo ensinar o tecnicamente errado. Mas também não acho correto separar o mundo entre os cultos que sabem falar e a animália que grunhe porque não segue uma norma que os sábios definiu (rá!) como sendo a coisa certa. A língua é a falada na rua e também é a que segue as convenções que os estudiosos definiram com sendo “a língua”. No nosso caso aliás, o português nada mais é do que latim mal falado, modificado pela força da sociedade na qual estava inserido. Ao longo do tempo, ganhou suas próprias regras, como o italiano, o francês, o romeno. No fundo, tudo coisa de bárbaro.

Idioma não é “patrimônio nacional” – por mais que os estados ou os gramáticos queiram. É patrimônio de todos e de cada um dos seus falantes, pertencentes aos estados de que forem. E como a regra é “o dono é que manda” (não gosto, sou contra, mas é assim)… perdeu, preibói. Agora, tá tudo dominado.

É: o colonizador deixou aqui sua língua, e agora, nem que queria, consegue levá-la embora. Largou comigo? Virou minha. Não é mais dele – nem sua. É nossa, no máximo. Faço dela o que quiser, mudo, adapto para meu proveito. Se eu entendo o que preciso e quem eu quero que me entenda também, tá tudo valendo. Não tem melhor, nem pior.

Nada é mais meu que minha própria língua. Desde que a sinta como minha.

O país em que não se podia dançar

Sábado falei de Samora aqui, sobre a força que o nome dele mantém.

Herói revolucionário e primeiro presidente do país, era uma espécie de Lula para os moçambicanos: o cara que veio do povo (era enfermeiro), virou líder durante a guerra revolucionária, foi presidente, mobilizava as massas, fazia discursos memoráveis. E morreu no poder, o que mitifica ainda mais o ídolo (veja aqui uma reportagem que fiz quando do aniversário da morte dele).

Hoje em dia, todas as notas de metical (o dinheiro moçambicano) têm a efígie de Samora (“efígie” – não “esfinge”, pelamordedeus).

Samora não era uma unanimidade, tanto que houve uma guerra civil no país. Mas da parte “difícil” da postura dele – como, por exemplo, ter criado “campos de reeducação” para alguns que não pensavam como o governo – pouco se fala.

Justamente esse lado duro (de certo modo, inevitável, quando visto pelo prisma das circunstâncias do momento) gerou histórias como a que a Sandra colocou hoje no Mosanblog – sobre a proibição para… dançar.

Clique aqui para ler.

Coisa de gente que quer ser autoritária, mas não tem coragem. Ou de chefetes, que fazem o que fazem achando que aquilo vai ser uma sensacional puxada no saco do chefe.

Nem sempre funciona.

Lembro, em um dos lugares em que trabalhei, que existia um mal estar com um sujeito lá, porque, alegadamente, “o patrão não gostava dele”. O cara só dava entrevista quando não tinha jeito de evitar – era um proeminente nome da República de então.

Pois, durante uma viagem, tive a chance de almoçar com o patrão. No outro lado do salão, o referido sujeito comia sozinho. O patrão levantou, pegou o cara pelo braço e trouxe o nego pra almoçar na nossa mesa.

O papo foi animadíssimo. E eu ali, com aquela cara de besta, sem entender.

De birra, passei a entrevistar o cara sempre que pude. Ninguém falou nada, nunca.

Acidente ou assassinato, a luta continua

Reportagem publicada pela Agência Brasil, sobre o aniversário da Morte de Samora Machel.

Depois de acompanhar em Maputo as cerimônias da independência de Moçambique, em 1975, Mirian Makeba gravou uma canção em homenagem ao país, à Frelimo e à Samora Machel.

“Mama Africa”, na época, não podia entrar no seu próprio país, a África do Sul, por ser uma voz muito ativa contra o apartheid. Por isso apreciou tanto a independência do vizinho.

Ela só voltaria à África do Sul 15 anos depois. Samora havia morrido quatro anos antes.

A luta prosseguia. E não parou até hoje.

20/10/2010
Após 24 anos, a morte do presidente moçambicano Samora Machel ainda não foi esclarecida

Eduardo Castro
Correspondente da EBC para a África

Maputo (Moçambique) – A família do ex-presidente de Moçambique Samora Machel ainda espera por “reais esclarecimentos” sobre as causas da morte do líder africano. “Se não for no meu tempo, será no tempo dos meus netos. O que eu sei é que a verdade vai chegar e todos vão conhecê-la”, afirmou a viúva, Graça Machel (casada atualmente com o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela), logo depois de uma cerimônia que marcou os 24 anos da morte de Samora Machel. Falando ao jornal O País, Samora Machel Junior disse que “a verdade nunca se esconde. Pode demorar, mas há de chegar. Nós acreditamos nisso”.

Em 19 de outubro de 1986, o presidente Samora e sua comitiva de 33 pessoas voltavam de Mbala, na Zâmbia, depois de um encontro com os então presidentes Kenneth Kaunda, da Zâmbia, José Eduardo dos Santos, de Angola, e Mobuto Sesse Seko, do antigo Zaire (hoje República Democrática do Congo). No retorno para Maputo, o avião russo Tupolev chocou-se contra as montanhas de Mbuzine, ainda em território sul-africano, controlado pelo governo do regime racista do apartheid.

Em Madri, onde está em visita de trabalho, o atual presidente moçambicano, Armando Guebuza, afirmou que as estátuas erguidas em lembrança de Samora “não são apenas em homenagem à sua vida e obra, mas também uma expressão da indignação pelo seu assassinato”. Segundo Guebuza, que liderou a parte moçambicana da investigação na época do acidente, o procedimento deve continuar aberto “enquanto não forem esclarecidas as circunstâncias em torno dos trágicos acontecimentos”.

Uma comissão internacional, formada por especialistas da então União Soviética, da África do Sul, de Moçambique e dos Estados Unidos, concluiu tratar-se de acidente. O governo moçambicano queixa-se de não ter tido pleno acesso ao local da queda, nem a dados referentes aos rádios de localização (VOR) instalados nas proximidades, levantando a suspeita de que o sinal de um falso radar poderia ter desviado o avião da rota, induzindo-o ao choque nas montanhas. A hipótese de um míssil ter sido disparado contra a aeronave também foi levantada na época.

“O trágico acidente que vitimou o presidente moçambicano ocorreu numa altura em que o então regime racista do apartheid protagonizava ações de agressão e desestabilização contra os países da África Austral, bem como de ameaça pessoal ao próprio presidente Samora”, afirmou em comunicado a Presidência de Moçambique, quando da passagem do vigésimo aniversário do acidente, em 2006.

Contrapondo-se à certeza das autoridades moçambicanas, o livro de um jornalista português radicado há 33 anos na Rússia foi recentemente publicado com uma série de documentos e depoimentos de autoridades da então União Soviética envolvidas nas investigações e também no relacionamento político entre os governos de Moscou e Maputo.

“À medida que as leituras avançavam, aumentava a convicção de que o desastre aéreo que vitimou o presidente de Moçambique não se tinha devido a um ato de sabotagem dos serviços secretos sul-africanos, nem a outras conspirações, mas simplesmente ao desleixo da tripulação soviética”, escreveu José Milhazes, logo no texto introdutório do livro.

De acordo com depoimentos colhidos por Milhazes, os mapas de bordo do Tupolev estavam defasados, o avião não carregava todos os manuais de segurança e não existia plano de vôo detalhado. O livro também acusa a tripulação, com base nas gravações da caixa preta, de estar desatenta no momento da aproximação para pouso, por já ter feito o procedimento tantas e tantas vezes.

Edição: Vinicius Doria

Samora

Em 19 de outubro de 1986, o avião Tupolev que trazia o presidente moçambicano Samora Moisés Machel caiu ao aproximar-se para o pouso em Maputo.

É o chamado acidente de Mbuzine, que foi lembrado hoje aqui – mas não só hoje.

Primeiro presidente do país, líder revolucionário, não era político, empresário ou diplomata. Era orgulhosamente guerrilheiro.

O jornal A Verdade fala sobre um livro que conta a história dele. Você vê aqui.