Antológico, ontológico, sobrenatural

Retomo a publicação, aqui no blog, das minhas colunas no portal Fato OnLine – originariamente publicadas às sextas-feiras.

rio5

Publicado sexta, 13 de novembro (05:59) – Atualizado hoje às 12:33

E o que foi aquele gol de Neymar contra o Villareal? Segundo um reluzente periódico mineiro (a internet tá aí, pra perpetuar barbaridades), foi “ontológico”. Das duas uma: ou o redator queria escrever “antológico”- de antologia – e ficou com medo da anta cruzando sua palavra; ou, de fato, sabia o que estava fazendo e optou por filosofar na manchete. Afinal, ontologia é a parte da filosofia que estuda as propriedades mais gerais do ser, o “além do ser”, mais pra lá do fenomênico, o oculto, o divino. E esse gol, cá pra nós, tem parte com o oculto, é coisa do Mais Pra Lá.

Tem o pé do Sobrenatural de Almeida, personagem de Nelson Rodrigues que fazia gols inacreditáveis. Mário Filho, irmão de Nelson, escreveu uma (aí sim) antológica crônica sobre gols antológicos, ontológicos, sobrenaturais. Chama-se Gols Inesquecíveis, e cita uma série de obras de arte que nunca vimos, nunca veremos, e sequer ouvimos falar. Mas estão na antologia do futebol, que também têm parte com o oculto. “Há gols assim, que entram para ficar na nossa memória”, diz ele. “Podem passar os anos que a gente não esquece mais”.

Nelson Rodrigues chamava Mário de “Homero do futebol brasileiro”, comparando com o grego que escreveu Ilíada e Odisseia. “Hoje, eu e meus colegas andamos por aí, realizados, bem-sucedidos, temos automóveis e frequentamos boates; andamos de fronte erguida e nosso palpite tem a imodéstia de uma última palavra. Mas eu gostaria de perguntar: o que era e como era a crônica esportiva antes de Mário Filho? Simplesmente não era, simplesmente não havia. Sim, a crônica esportiva estava na sua pré-história, roía pedras nas cavernas.”

Mário nasceu em 1908, no Recife. Em 1915, mudou-se para o Rio, trabalhou em alguns jornais antes de dirigir o (também) antológico Jornal dos Sports. Com suas páginas cor de rosa, ele contou a história diária do futebol carioca entre 1931 e 2010. Entre 1936 e 66, tendo Mário como dono e responsável, foi praticamente o primeiro a acompanhar o dia a dia dos clubes fora do campo, informando sobre negociações em andamento, salários e valores de passes de jogadores.

Quando o Brasil foi escolhido como sede da Copa de 50, Mário protagonizou uma disputa feroz com o também jornalista e deputado Carlos Lacerda, que defendia que o novo estádio a ser construído na cidade fosse no então longínquo bairro de Jacarepaguá. Mário Filho queria que ficasse no Maracanã. Ganhou a parada. Por isso, o Estádio Municipal tem seu nome.

E foi no Maracanã que aconteceu o primeiro gol inesquecível descrito na crônica: “E lá vem ele, o gol do Joel, como pintado de fresco, brilhante, limpo, o cheiro de tinta vivo feito um perfume, solto, alado. Não era momento de gol, pelo menos não parecia, porque Ramiro ia chutar a bola, com Olavo junto, para qualquer lado. Eis que Joel se lança, feito um torpedo humano, esticado, a meio metro do gramado. Quando o bico da chuteira de Olavo ia tocar na bola, a cabeça de Joel a impulsionava para o fundo das redes.”

O texto segue, com outros lances inesquecíveis – que, obviamente, ninguém mais lembra simplesmente porque nunca soube ter existido: o de Friedenreich no Sulamericano de 1919, em Álvaro Chaves, contra o Uruguai (“patrimônio nacional”); o de Nilo Murtinho Braga no primeiro campeonato brasileiro de seleções, em 1924 (“Nilo emendou uma bola de cima da área, na linha branca, um pouco de lado, com aquele pezinho de moça que tinha, e não houve Nestor que evitasse o gol”). E o gol do Osvaldinho do América contra os escoceses do Motherwill? “Driblou um, e dois, e três, e quatro, e cinco. Aí o gol se abriu diante dele e ele colocou a bola lá no canto”.

Mário também descreve gols inesquecíveis de Petronilho pulando com um pé só (tinha quebrado a perna no lance anterior); uma bicicleta de Leônidas (esse você ouviu falar) pelo Flamengo, contra o Independiente de Buenos Aires, em 1939 (“foi tão bonito que Bello – do Independiente – saiu correndo para cumprimentar Leônidas”); o gol de letra de Isaías, pelo Madureira, contra o esquadrão do Fluminense que ganhou cinco campeonatos; o de falta de Lelé, no jogo da seleção contra o Uruguai, na despedida dos pracinhas brasileiros que estavam de partida para a Segunda Guerra (“era tão longe que o quíper uruguaio La Paz não quis barreira, não quis nada. (…) Não pôde fazer um gesto.”).

Mas tinha que haver um gol de Heleno, diz Mário. No estádio da Gávea, num Flamengo x Botafogo: “Heleno estava na linha da grande área, de costas para o gol. Parou a bola com o peito, virou-se com ela ainda no peito, e viu a área cheia de flamengos, o gol lá no fundo. Se deixasse a bola cair no chão, teria que travar combate com vários adversários, que já o cercavam, esperando justamente que fizesse o que qualquer um faria. Heleno de Freitas, então, curvou-se um pouco para trás, empinando o peito, deixando a bola onde estava e avançou assim, com ela no peito. Ninguém podia fazer nada contra ele. Se lhe quisessem tirar a bola, pará-lo, travá-lo, era pênalti. Perto do gol, Heleno de Freitas deixou a bola cair e fuzilou o quíper do Flamengo.”

Agora, releia o último parágrafo. Troque “Heleno” por “Neymar”, “flamengos” por “villareales”, “quíper” por “goleiro”. Veja, de novo, o gol de sábado passado. Diga que não é praticamente a mesma coisa. Antológicos. Ontológicos. Sobrenaturais. Inesquecíveis – enquanto não vierem os próximos, enquanto durarem na nossa memória.

Deixe um comentário